Vereador quer fazer gestante ouvir coração de feto antes de aborto legal
Segundo o autor, a ideia é que a gestante avalie "prós e contras" do procedimento, que é garantido por lei, por exemplo, para crianças, adolescentes e adultas grávidas em consequência de violência sexual
“Invocando as bênçãos e a proteção de Deus”, diz o vereador Filipe Chociai (PSD), “declaro aberta a presente sessão ordinária”. É assim que o presidente da Câmara de Ponta Grossa (PR) abre a sessão às segundas e quartas-feiras.
Não foi diferente nesta segunda (6) na Casa que, “em nome de Deus e em defesa da família”, deve discutir uma série projetos de lei contra o aborto.
Um deles, de autoria de Leandro Bianco (Republicanos), foi aprovado em 27 de fevereiro — ainda não sancionado pela prefeita da cidade, Elizabeth Schmidt (PSD), o PL 140/2022 institui uma campanha antiaborto “Em Prol da Vida” que prevê informar o público sobre planejamento familiar, métodos contraceptivos e “efeitos psicológicos e colaterais que um aborto causa na mulher e no feto”. Procurada pela reportagem, a prefeita não comentou o assunto.
Tramitam outros quatro projetos contra o aborto legal, de autoria de Felipe Passos (PSDB): o PL 35/2023 quer instituir o dia do nascituro; o 36/2023, a semana do nascituro; o 37/2023 pretende tornar obrigatório que os médicos da cidade orientem a gestante a ouvir os batimentos cardíacos do feto
antes do aborto; e o 38/2023 propõe afixar cartazes nos hospitais ilustrando o que acontece com o feto depois do procedimento.
Segundo o autor, a ideia é que a gestante avalie “prós e contras” do procedimento, que é garantido por lei, por exemplo, para crianças, adolescentes e adultas grávidas em consequência de violência sexual.
“Não há constrangimento algum, nenhum abuso de autoridade”, Passos diz ao TAB. “Estamos apenas sugerindo que a criança ou a mulher que está ali possa escolher pela vida que está dentro dela”, afirma.
‘Patrulha ideológica’
A 117 km de Curitiba, Ponta Grossa é uma cidade de 358 mil habitantes onde só há um bloco parlamentar, o cristão, fundado por Ezequiel Bueno, conhecido como Pastor Ezequiel (Avante) — ele também é soldado e, vez ou outra, vai fardado às sessões. “Trabalhei por 16 anos na Polícia Militar e atendi casos de estupro contra crianças, inclusive. Mesmo assim, sou contra o aborto”, diz.
Ezequiel votou a favor da campanha antiaborto de Bianco, mas declarou não se lembrar do teor do PL.
Dos 19 vereadores, apenas três são mulheres — entre elas, Adriana Jamier (Solidariedade), missionária da Igreja Quadrangular que é a favor dos PLs de Passos e Bianco. “Escutar o coração do bebezinho que está na barriga pode fazer ela [gestante] repensar muitas coisas na vida dela”, afirma.
No Brasil, o aborto é permitido em três situações: em casos decorrentes de estupro, de feto anencéfalo e de risco à gestante. “Nós não precisaríamos nem estar tendo esse tipo de conversa. O aborto legal está previsto no artigo 128 do Código Penal, então não é nossa competência tratar disso”, critica a vereadora Josi Kieras, conhecida como Josi do Coletivo (PSOL), uma das poucas a se posicionar contra as propostas.
Se as leis passarem, acrescenta a ativista Ana Paula de Melo, que se identifica como “covereadora” do mandato de Josi, as gestantes serão “revitimizadas”: crianças e adolescentes vítimas de violência sexual seriam alvo de violência psicológica ao se sentirem obrigadas a dar continuidade a gestações. “Já está tipificado na lei”, diz, mencionando o Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Os PLs fortalecem a cultura do estupro, porque tiram o foco do estuprador e colocam a culpa na mulher se ela optar pelo aborto”, avalia Maria Cristina Rauch Baranoski, professora de direito da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa) que pesquisa violência contra a mulher. Segundo ela, trata-se de um “patrulhamento ideológico”.
‘Fora da realidade’
Fora da Câmara, muitas mulheres ponta-grossenses não sabiam das discussões que podem mudar drasticamente como a cidade trata o aborto legal.
A cerca de 2 km da Câmara, no Parque Ambiental, um dos maiores da cidade, Maria*, 25, diz que se deve priorizar a decisão da mulher. “Se ela já decidiu que não quer, ela pode ter um trauma psicológico mais tarde”, afirma, segurando o filho de um ano e cinco meses nos braços.
A estudante Mariane, 18, que já teve um aborto espontâneo, também discorda das propostas. “Se o médico fizer a gente escutar o batimento, a gente vai se emocionar, né? A pessoa que foi vítima de estupro pode até aceitar na hora [manter a gravidez], mas depois toda vida ela vai lembrar dessa violência.”
“Acredito que seja um machismo estrutural, porque eles [vereadores] nunca passarão pelo que todas as mulheres estão sujeitas todos os dias nas ruas”, considera a farmacêutica Leila Teixeira, 30. Para a gerente de escritório Luísa*, 39, a discussão está “fora da realidade”. “É um absurdo. O vereador é homem, né?”, indaga.
Autor dos PLs, Passos é réu na Justiça em uma ação criminal por assédio sexual contra servidores na Câmara de Vereadores, o que teria ocorrido, segundo denúncia do Ministério Público, entre 2019 e 2020. Na esfera cível e criminal, o vereador também responde pelo crime de “rachadinha”. Ele diz que é inocente.