MULHERES NA LINHA DE FRENTE

A tripla jornada enfrentada pelas mulheres da Saúde em um ano de pandemia

Presentes no mercado de trabalho desde muito antes dos primeiros casos de covid-19 em Goiás,…

Presentes no mercado de trabalho desde muito antes dos primeiros casos de covid-19 em Goiás, as mulheres da área da saúde sempre souberam lidar com a tripla jornada: cumprir suas funções profissionais, cuidar dos filhos  e do lar, e ainda manter a vida social. Mas, a partir daquele dia 12 de março de 2020, com os primeiros casos da doença confirmados no estado, elas descobriam que a rotina delas ficaria ainda mais extensa e dominada pelos sentimentos de impotência, medo e ansiedade.

Globalmente, as mulheres são 70% das pessoas que trabalham na linha de frente em setores de saúde e sociais, segundo dados da ONU Mulheres. Em Goiás, estima-se que mais de 5 mil atuem diretamente no enfrentamento da Covid-19, conforme a Secretaria Estadual de Saúde.

Uma delas é Marina Mascarenhas, infectologista e diretora técnica do Hospital de Campanha (HCamp) de Goiânia. Ela transparece exaustão pelo trabalho incessante: “Passo semanas sem conseguir ir ao supermercado”.

Nas últimas semanas, o fardo do combate à covid ficou mais pesado. Um dia antes de falar com a reportagem, Marina perdeu o tio e um grande amigo para a doença.

Desde então, vive um montanha-russa de sentimentos: sente orgulho de poder salvar vidas tão diretamente; e cansaço, ao perceber que muitas pessoas ainda não entendem a gravidade da doença.

“Não é só uma gripezinha mesmo, né, doutora?”, é algo que Marina diz ouvir cotidianamente dos pacientes. “É cansativo lidar com pessoas que negam a realidade”, completa ela.

Saúde mental

Com tanto esforço e sem vislumbrar um fim para este período, é natural que essas pessoas cheguem ao estado de esgotamento mental e físico. Uma pesquisa realizada em 2020 pela Ipsos, revelou que 46% delas sentem que ninguém as ajuda e outras 59% das entrevistadas pelo estudo disseram estar com ansiedade ou depressão. O cotidiano fica ainda mais incerto quando a realidade dos números é percebida: em Goiás, 8.304 profissionais da saúde já se infectaram com a doença.

A gerente de enfermagem do Hospital Santa Helena em Goiânia, Maria Eduarda Pinheiro Barbosa, de 53 anos. (Foto: Jucimar de Sousa / Mais Goiás)

A gerente de enfermagem do Hospital Santa Helena, Maria Eduarda Pinheiro Barbosa, diz ser um desafio diário ler as notas técnicas, treinar a equipe e ver a saúde mental de muitos afetada. “Me exige pensar rápido, viver o presente, pois o amanhã eu não sei como vai vir. Me reinventei todos os dias e tento não demonstrar fragilidade para minha equipe”, diz ela.

E não é apenas o esgotamento com a tripla jornada que contribui para o risco da saúde mental das mulheres profissionais de saúde. O medo de se infectar e transmitir o vírus para a família, ver amigos de profissão ou parentes morrendo e criar laços com pacientes internados, também fazem parte da vida atual dessas mulheres.

A gerente de enfermagem do Hospital Santa Helena em Goiânia, Maria Eduarda Pinheiro Barbosa, de 53 anos, e algumas mulheres de sua equipe (Foto: Jucimar de Sousa / Mais Goiás)

Companhia

Enfermeira do plantão noturno no Hospital e Maternidade Municipal Célia Câmara em Goiânia, Raquel Fernandes conta que se comove com o medo dos pacientes que não podem ficar acompanhados da família. “Eles ficam sozinhos com a gente. A companhia deles somos nós”, diz ela.

Enfermeira do plantão noturno no Hospital e Maternidade Municipal Célia Câmara em Goiânia, Raquel Fernandes (Foto: Arquivo pessoal/ Reprodução)

Semelhante aos pacientes que cuida, Raquel já teve que se isolar da família quando foi infectada pelo coronavírus. “A gente que trabalha na linha de frente, quando pega o vírus sente um impacto. Fiquei com medo de morrer e ansiosa de pensar em deixar minha filha de três anos e meu marido”, relata a enfermeira.

Mesmo com a dor de ficar isolada, Raquel relata que o que mais lhe doeu foi perder uma amiga de profissão para a doença. “Eu fiquei muito ruim, muito mal e até hoje pensar nela, falar nela é muito doloroso. Muita coisa dói, mas perder a minha amiga, que trabalhava comigo? A gente se conhecia há nove anos!”, comenta com a voz embargada de choro.

Família

Mãe de duas filhas, dona de casa, esposa, filha, irmã, amiga e médica do Hospital Regional de Luziânia. Essas são algumas das atribuições que Renata Meireles acumula em sua vida. Ela revela que trabalhava apenas no hospital privado antes da pandemia e, com isso, tinha mais tempo dedicado à família.

Médica do Hospital Regional de Luziânia, Renata Meireles (Foto: Arquivo pessoal/ Reprodução)

Com a chegada do vírus, ela foi convidada a assumir a diretoria técnica de um dos hospitais de Luziânia e afirma que desde então sua vida mudou radicalmente. “Foi muito desafiador. É uma doença contagiosa, que expõe minha família ao risco de se contaminar. Aceitei o desafio e percebi que temos que deixar o ego de lado e servir para salvar vidas”, afirma ela.

Renata conta que em quase um ano de mudança, as filhas e o marido tiveram que aprender a conviver com a correria, ausência e dedicação da médica. “Em meio a segunda onda, que me parece tão ou mais intensa quanto a primeira, o sentimento é que temos muito a fazer”, diz a médica.

Isolamento

A enfermeira do Hospital Estadual de Doenças Tropicais de Goiás (HDT), Rosimeira Pereira Gonçalves, de 43 anos. (Foto: Jucimar de Sousa / Mais Goiás)
A enfermeira do Hospital Estadual de Doenças Tropicais de Goiás (HDT), Rosimeira Pereira Gonçalves, de 43 anos. (Foto: Jucimar de Sousa / Mais Goiás)

Se isolar da família ao se contaminar é algo comum entre as mulheres da linha de frente do covid-19. A enfermeira no Hospital Estadual de Doenças Tropicais de Goiás (HDT), Rosimeira Pereira Gonçalves, relembra que quando se contaminou e ficou 14 dias isolada, a filha de cinco anos passava comida e remédios debaixo da porta. “Melhora logo mãe!”, pedia a caçula. “Isso me doía muito!”, relembra Rosi.Rosi explica que a parte familiar foi uma das que mais ficou de lado neste ano, em que a atenção é voltada quase 24 horas para o trabalho, às vezes ficando até 36 horas fora de casa. “Quando voltamos, o cansaço é tanto que não conseguimos dar a atenção merecida a eles”, lamenta ela.

A enfermeira do Hospital Estadual de Doenças Tropicais de Goiás (HDT), Rosimeira Pereira Gonçalves, de 43 anos. (Foto: Jucimar de Sousa / Mais Goiás)

Lutas e desejos

Hoje em Goiás, quase 9 mil pessoas já morreram por covid-19. Os leitos chegaram a níveis alarmantes, a grande maioria com mais de 90% de ocupação. Mesmo assim, as mulheres da saúde buscam acreditar em dias melhores.

Todas as entrevistas ouvidas pelo Mais Goiás foram questionadas sobre o que gostariam de fazer quando a pandemia finalmente terminar. “Dar um abraço em todos” e “poder dizer que vencemos essa luta” foram as respostas mais frequentes, como comentou a enfermeira Rosi.

Outras, como a gerente de enfermagem Maria Eduarda, responderam: “Um agradecimento em um outdoor para minha equipe”. Mas, algo presente em todas, era o orgulho de fazer parte da história mundial, ao salvar vidas.

A enfermeira chefe da UTI Covid do Hospital das Clínicas da UFG em Goiânia, Marlice Carvalho, atua na profissão há mais de 30 anos e diz que seu maior desejo é que as pessoas tenham entendido e aprendido algo com a doença.

“Pra mim foi um momento ímpar, uma oportunidade de ser útil e poder estar ajudando ou cumprindo melhor o nosso papel. Espero que as pessoas saiam disso mais espiritualizadas”, diz Marlice.

A enfermeira chefe da UTI Covid do Hospital das Clínicas da UFG em Goiânia, Marlice Carvalho, atua na profissão há mais de 30 anos (Foto: Jucimar de Sousa / Mais Goiás)

Já Raquel, enfermeira do período noturno, mencionada anteriormente, diz ter orgulho de cada mulher da área da saúde. “O que mais a gente tem é enfermeira que trabalha em dobro para levar o sustento das suas famílias, mulheres guerreiras, todas elas. Eu tenho muito orgulho e não aceito ninguém me inferiorizar, porque sei das minhas lutas. Deus me deu esse dom de cuidar do próximo”, diz ela.