LEVANTAMENTO

Apenas duas a cada cinco crianças estão protegidas contra poliomielite no Brasil

Em 2021, apenas um a cada três municípios atingiu meta de vacinação contra paralisia infantil

Apenas duas a cada cinco crianças estão protegidas contra poliomielite no Brasil (Foto: Governo Federal)

Em meio ao primeiro caso de poliomielite registrado nos Estados Unidos em quase uma década, e amostras do vírus voltarem a circular em águas de esgoto de outros lugares do mundo, como o Reino Unido, o alerta em relação ao retorno da pólio também chega ao Brasil. O temor do ressurgimento da doença é a principal consequência das quedas sucessivas na cobertura vacinal contra o poliovírus. E, segundo um levantamento parte do estudo VAX*SIM, da Fiocruz, que analisa a imunização dos menores de cinco anos, apenas duas a cada cinco crianças brasileiras estão protegidas até agora em 2022.

Os dados da Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite, que foi prorrogada até 30 de setembro devido à baixa adesão, mostram que até a última sexta-feira apenas 44% das crianças entre um e quatro anos receberam o reforço da vacina neste ano. Isso significa que cerca de 6,4 das 11,5 milhões de crianças elegíveis estão desprotegidas a duas semanas do fim da campanha, destacam os pesquisadores.

A doutora em saúde coletiva e coordenadora do Observa Infância – projeto da Fiocruz e do Centro Universitário Arthur de Sá Earp Neto (Unifase) responsável pelo VAX*SIM –, Patrícia Boccolini, alerta os pais sobre o risco real que o país enfrenta hoje de retorno da paralisia infantil, e a gravidade do diagnóstico para as crianças.

— A doença é muito grave, ela é incapacitante, pode trazer sequelas para as crianças para o resto da vida. Então a possibilidade da volta desse vírus, que é real, traz um impacto gigante para a sociedade. Os especialistas estão muito preocupados porque as pessoas esqueceram como essa realidade era. Seria o retorno de uma doença devastadora, principalmente para a população infantil, um retrocesso imenso. Os pais precisam proteger seus filhos, a vacina está aí, disponível nos postos de saúde — orienta Patrícia.

O poliovírus, causador da poliomielite, é considerado erradicado no Brasil desde 1994. Porém, em 2020, o relatório da Comissão Regional para a Certificação (RCC) da Erradicação da Poliomielite nas Américas (Opas/OMS) expressou preocupação com a possibilidade de reintrodução do patógeno no país e o colocou na lista de alto risco para a doença, ao lado de Bolívia, Equador, Guatemala, Haiti, Paraguai, Suriname e Venezuela.

Tendência de queda na vacinação de crianças

O esquema de imunização contra a doença no Brasil é composto de cinco doses: as três primeiras com a vacina injetável de vírus inativada aos 2, 4 e 6 meses de idade. Depois, entre os 15 e os 18 meses de idade (1 ano), é feito o primeiro reforço com a vacina de vírus atenuado, a famosa gotinha. Aos 4 anos de idade, é indicado ainda um segundo reforço, também por via oral.

O levantamento do VAX*SIM ressalta que as sucessivas quedas na cobertura vacinal levaram o Brasil a ter, em 2021, o pior percentual dos últimos 25 anos. Apenas 70% dos bebês completaram o esquema primário com as três doses, e 60% das crianças receberam o primeiro reforço. Segundo o novo levantamento dos pesquisadores, dois a cada três municípios brasileiros não atingiram a meta de vacinar 95% do público-alvo.

— Existe uma heterogeneidade muito grande entre os municípios. Temos cidades de médio porte cuja cobertura não chegou nem a 10%. Nos municípios que tendem a ter uma cobertura da atenção primária maior, a cobertura vacinal também tende a ser maior. Isso faz todo o sentido pois a vacinação acontece majoritariamente nos postos de saúde. Então estratégias para aumentar a cobertura nacional precisam ser focadas nas especificidades desses lugares, olhar o que está acontecendo ali. Porque só estender a campanha não vai ser suficiente — avalia a coordenadora do Observa Infância.

No ano passado, entre as capitais, somente Vitória, no Espírito Santo, alcançou o percentual de 95%. Além disso, 11 capitais registraram coberturas abaixo da média nacional, chegando a taxas de até 30%. Foram elas: Teresina (PI) e Natal (RN), com 74%; São Paulo (SP), com 73%; Porto Velho (RO), com 72%; Aracaju (SE), com 71%; Boa Vista (RR), com 63%; Belém (PA), com 57%; São Luís do Maranhão (MA), com 48%; Joao Pessoa (PB), com 43%; Macapá (AP), com 39%, e Salvador (BA) com somente 30%.

Segundo dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), a última vez que o Brasil alcançou a meta de cobertura contra a pólio foi em 2015. Desde 2018, nem mesmo a marca de 80% é ultrapassada. Patrícia destaca que o fenômeno da queda, estudado hoje pelo Observa Infância, não é exclusivo do imunizante da pólio, e afeta as coberturas de todas as outras vacinas infantis disponíveis hoje pelo PNI.

— Essa queda começou antes da pandemia. A Covid-19 deu uma acentuada, mas mais ou menos desde 2016 temos observado essa tendência — diz a pesquisadora.

Em relação ao sarampo, por exemplo, em 2019 o país perdeu o certificado de erradicação da doença, e desde então não consegue recuperá-lo. Isso porque somente 52% das crianças receberam a primeira dose em 2022 até agora, e apenas 43% completaram o esquema vacinal. O imunizante da tríplice viral – aplicado a partir de um ano de idade em duas doses, com intervalo de ao menos um mês entre elas – protege contra sarampo, rubéola e caxumba. Em 2021, a cobertura contra as doenças ficou em 63% – longe do ideal.

— Se isso aconteceu com o sarampo, de o vírus voltar pela baixa cobertura vacinal, o que impede que aconteça também com a pólio? Se não conseguirmos segurar o vírus com uma imunidade coletiva, vacinando ao menos 95% das crianças, o risco de ela (pólio) voltar é real. E a forma como ela assola a população infantil e deixa diversas sequelas é muito grave — alerta Patrícia.

O que causa a baixa cobertura?

Para a pesquisadora, embora o crescimento do movimento antivacina no Brasil com a disseminação de fake news sobre os imunizantes seja alarmante, há outros pontos importantes que têm corroborado de forma mais significativa para a menor adesão às vacinas.

— Como os pais não veem crianças com pólio, isso não fica no imaginário deles, o que leva a uma percepção de risco da doença menor e leva muitos a não vacinarem os filhos. Existe a questão também da perda de oportunidade, a mãe e o pai que chega no posto e ele já está fechado pelo horário e acaba não voltando outro dia. Para alguns imunizantes, como o da BCG, são aplicados apenas em dias específicos na semana, o que é ainda pior — explica a especialista.

Patrícia acredita também que problemas em outras áreas que afetam o cotidiano dos brasileiros podem também influenciar para a falta de priorização das vacinas. Ela cita, por exemplo, o aumento da fome no país. Segundo um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), de junho, cerca de 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente no Brasil. Um outro levantamento da mesma rede, divulgado na semana passada, mostrou que três em cada dez famílias sofrem insegurança alimentar moderada ou grave.

— A preocupação das pessoas com o que elas vão comer é muito mais imediata e urgente do que a vacinação. E muitas vezes essas famílias precisam ter um dinheiro extra para conseguir imunizar os filhos, por causa de uma passagem para chegar no posto que é longe, por exemplo. Então o aumento da desinformação na internet vem aumentando e é de fato um problema, mas acredito não ser tão perto da nossa realidade ainda como esses outros fatores — avalia a pesquisadora.

Ela cita ainda a falta de campanha do Ministério da Saúde para atrair os pais para as unidades de saúde. Para ela, é preciso um esforço que dure o ano inteiro, e não apenas pontualmente nas épocas da multivacinação. Com o imunizante da Covid-19, por exemplo, Patrícia pontua que praticamente não há iniciativas de comunicação, o que se reflete na baixa cobertura contra a doença nas faixas etárias mais novas.