Césio 137: Trinta anos do brilho da morte
Apenas 19 gramas da substância levaram Goiânia a viver dias de horror e incertezas. Acidente radiológico é considerado o maior do mundo em área urbana
No dia 13 de setembro de 1987 teve início o que é considerado o maior acidente radiológico do Brasil e do mundo. O Césio 137 espalharia por Goiânia muito pânico e desespero, seja pela desinformação ou pelo descaso com a qual algumas vítimas afirmam terem sido tratadas. Nesta semana o acidente completa 30 anos e algumas vítimas contam que ainda sofrem com a falta de assistência do Estado.
Em um prédio abandonado no região da capital, onde hoje é o Centro de Convenções de Goiânia, dois catadores encontraram um aparelho de radioterapia nas ruínas do antigo Instituto Goiano de Radioterapia. O local havia sido vendido para o Ipasgo e a manutenção do espaço era da responsabilidade do Estado. Com o intuito de vender a sucata, os dois levaram a peça para um ferro-velho, onde a máquina começou a ser desmontada. Uma parte da peça foi levada para outro ferro-velho de Devair Ferreira, onde a cápsula foi aberta e o pó radioativo foi encontrado.
Devair se encantou com o brilho que o Césio 137 irradiava e mostrou a novidade para todos os vizinhos, amigos e familiares. Alguns dias depois, pessoas começaram a passar mal com sintomas de náuseas, tontura, vômitos e diarreia, principalmente Devair e sua esposa Maria Gabriela. Eles, no entanto, atribuíram os sintomas à ingestão de uma feijoada.
Ivo Ferreira, irmão de Devair, levou um pouco do pó para a sua filha, Leide das Neves, de apenas 6 anos. A menina brincou com o pó e posteriormente foi jantar, ingerindo o Césio por meio da refeição. Com tantas pessoas passando mal, os médicos trataram os sintomas como uma doença contagiosa. Porém, Maria Gabriela ligou os inícios dos sintomas ao pó misterioso e levou a peça até a Vigilância Sanitária.
Demora na confirmação
Maria Gabriela e um funcionário do ferro-velho do marido levaram a peça de ônibus e, assim, contribuíram com a contaminação de mais pessoas. Na Vigilância, o equipamento passou ainda dois dias em cima de uma cadeira, até um físico, que por acaso estava na capital naquele período, desconfiar que aquela peça poderia ser uma fonte radioativa. Apenas em 29 de setembro de 1987 foi dado o alerta que aquelas áreas foram atingidas pela radiação.
A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) pediu para que os moradores fossem transferidos para um esquema de triagem no Estádio Olímpico. Mais de 112 mil pessoas foram colocadas em quarentena e submetidas a intensos banhos para descontaminação. Enquanto isso, os técnicos da Cnen, policiais e bombeiros trabalhavam na demolição e remoção de objetos daquelas famílias, que foram tratados como rejeitos. Na época, o acidente foi divulgado como um vazamento de gás para não alarmar os estrangeiros que estavam na cidade, que sediava um GP de Motovelocidade no Autódromo da capital.
Algumas vítimas mais graves foram levadas para o Hospital Naval Marcilio Gomes, no Rio de Janeiro, e lá eram submetidas a banhos com esfregões e tiveram seus cabelos cortados. Mesmo assim, o caso deixou vítimas. Leide das Neves morreu no dia 23 de outubro de 1987 e foi enterrada em meio a protestos dos moradores que achavam que o solo seria contaminado com o corpo da menina. Sua tia, Maria Gabriela, também morreu no mesmo dia. Os dois funcionários de Devair, Israel Baptista dos Santos, de 22 anos, e Admilson Alves de Souza, de 18 anos, morreram no dia 27 e 28 de outubro, respectivamente. Todos os caixões foram enterrados lacrados com cimento em uma cova que foi coberta com chumbo.
Rejeitos
Após 10 anos de impasse, uma área foi definida para o depósito dos rejeitos. As 19 gramas de Césio que estavam dentro da cápsula resultaram em cerca de 6 mil toneladas de rejeitos que estão divididos em 4.223 tambores comuns, de 200 litros cada; 1.347 caixas metálicas; 8 recipientes de concreto e 10 contêineres marítimos. Eles estão enterrados no Parque Estadual Telma Ortegal, em Abadia de Goiás, em pequenas “montanhas” que têm cerca de 25 centímetros de cimento para não ter contato com o solo. Esse ano, o Césio perde a sua meia-vida, ou seja, perde um pouco da sua periculosidade, fato que só vai se repetir daqui 30 anos.
Em 1996, os médicos Orlando Teixeira, Criseide de Castro e Carlos Bezerril, responsáveis pela clínica onde o aparelho de radioterapia foi achado, e o físico hospitalar Flamarion Goulart foram condenados por homicídio culposo com penas de três anos de prisão em regime semi-aberto. As penas foram trocadas por serviços comunitários. O Estado de Goiás e o Governo Federal também foram condenado a pagar pensões vitalícias para as vítimas.
A região do ferro-velho ficou bastante desvalorizada após o acidente. Posteriormente, o local passou por processo de revitalização. No início de 2006, a prefeitura de Goiânia resolveu revitalizar o antigo Mercado Popular da Rua 74, reinaugurado em novembro do mesmo ano com uma edição do Casa Cor Goiás, com a presença de autoridades municipais e estaduais. Em fevereiro de 2007, o Mercado Popular passou a ser um ponto turístico da cidade, por possuir uma feira gastronômica todas as sextas-feiras à noite, sempre acompanhada de música ao vivo.
Contminação
Uma das vítimas, Luíza Odet dos Santos, conta que na época do incidente tinha 28 anos. Ela é prima e cunhada de Ivo Ferreira, pai da menina Leide das Neves, que se tornou símbolo da tragédia. Luíza relata como se deu a sua contaminação e os momentos de incerteza que viveu durante esse processo: “Eu morava no mesmo lote do Ivo e ele trouxe um pouco do pó para mostrar para a Leide. Ela me chamou e me mostrou o quanto aquilo brilhava. O Ivo pegou e passou um papel que continha o Césio no meu pescoço dizendo que iria me deixar mais bonita. No dia depois eu senti meu pescoço queimar, depois escureceu e criou algumas bolhas”, relata Luíza.
A aposentada conta que mesmo com esses sintomas ainda realizou uma viagem com o marid, Kardec Sebastião dos Santos, hoje com 61 anos, e, como não sabia de que se tratava, acabou contaminando outras pessoas por onde passou. “No dia seguinte, eu e meu esposo fomos visitar minha sogra em Anápolis. Lá, lembro como se fosse hoje, ela me passou um creme de pepino no meu pescoço e no braço do meu esposo, que também teve contato com o Césio”, descreve.
Luíza disse que após o seu retorno, Ivo e Leide já passavam muito mal. Várias pessoas se automedicavam e temiam essa nova “epidemia”, que contaminou boa parte de moradores daquela região. “Procuramos farmácias e eram prescritos remédios de acordo com os sintomas que relatávamos. Fomos também no HDT [Hospital de Doenças Tropicais], mas como não sabiam do que se tratava, mandaram a gente de volta para a casa”, conta.
Após dias sentindo esses sintomas, Luíza diz que foram surpreendidos com a presença de policiais e bombeiros, junto do pessoal do Centro Nacional de Energia Nuclear (Cnen), que queriam levá-los ao Estádio Olímpico para triagem. “ Lá [Estádio] as pessoas eram separadas e as que tinha lesões foram para o HDT e posteriormente para o Hospital Geral de Goiânia [HGG]”, salienta a aposentada.
Mesmo com todo o tratamento no HGG, Luíza e o marido foram transferidos para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Lá, ela conta que as feridas não estavam cicatrizando e que ela chegou a pensar no pior. “Ficamos dois meses no Rio e ainda queriam me transferir para Angra dos Reis, mas não aconteceu. Lá tomávamos banho de esfregão para descontaminação, usávamos roupas descartáveis e as notícias eram transmitidas por uma agente que vinha para Goiânia e voltava para o Rio”, afirma. “ Era um processo bastante demorado para descontaminação. Por diversas vezes eu pensei que iria morrer, ainda mais sabendo da morte da minha sobrinha e da Maria”, desabafa Luíza.
Anos após o caso, o Estado foi condenado a indenizar as vítimas por danos morais e materiais, mas Luíza destaca que hoje o Estado não está cumprindo com o que foi firmado na condenação. Ela reclama principalmente da falta de medicamentos, que não estão sendo distribuídos como eram antigamente. “As pensões estão muito defasadas. Algumas pessoas estão recebendo abaixo de um salário mínimo. Com isso, acabamos fazendo empréstimos para comprar esses medicamentos, ou seja, muitas pessoas estão se endividando por um direito de qualquer cidadão”, pontua.
Luiza se emociona ao lembrar que já cansaram de cobrar por justiça e de todos os desgastes psicológicos e emocionais que o acidente trouxe as vítimas. “Eu vi diversos parentes meus morrerem. E não só meus, como de várias vítimas. Pessoas perderam tudo o que tinham em questão de pouco tempo. Hoje eu vivo a minha vida, mas na época sofri muito preconceito. Moro no mesmo lugar, não quero sair daqui porque as pessoas têm que entender e saber a gravidade desse acidente para que outros não aconteçam”, conclui.
Medo e tristeza
Joana Augusta de Castro, de 75 anos, não foi uma vítima direta do Césio, mas morou na região na época do acidente. Ela residiu em um apartamento que tinha vista para a frente do Mercado Popular da 74 e conta que presenciou o desespero das pessoas que foram vítimas. “Foi apavorante e desesperador. Vimos pessoas terem suas casas e objetos destruídos. A gente tinha medo até de sair de casa. Adorava me encontrar com amigas no mercado da 74 e fiquei sem frequentar por um bom tempo. Foi muita tristeza. Víamos toda a movimentação de descontaminação e muitas pessoas acabaram se afastando”, relata Joana.
Apesar de todo medo, que era constante na vida das pessoas da região, Joana mora até hoje no mesmo lugar e conta que não pensou em se mudar na época do acidente. “Não mudei e nem passou pela minha cabeça em mudar. Ficamos até resolver todos os problemas de lá”, destaca a aposentada.
Mesmo com os comentários negativos pela região e desvalorização que o local sofreu por causa da tragédia, Joana conta que aos poucos aquela imagem de horror e tragédia que assombrava a rua 57 foi desfeita. “As pessoas precisavam tocar a vida de novo, porque todos tinham filhos e famílias. Foi devagar, mas o pessoal conseguiu a colocar a vida no eixo. Voltei a frequentar o mercado da rua 74. Tinha ainda técnicos medindo a radiação no local, mas nada que voltasse àquele caos.” Para ela, a memória do acidente deve servir como uma lição. “Tem que se lembrar do acidente para sempre acender um alerta. Para quem viu já foram momentos de pânicos, imagina para quem teve contato direto. Em respeito a essas vítimas, esse acidente nunca pode ser esquecido”, desabafa Joana.
Suporte
O diretor geral do Centro de Assistência ao Radioacidentados (C.A.R.A.), André Luiz de Souza, conta que o lugar foi fundado logo após do acidente, em fevereiro de 1988 e que, desde a época do acidente o lugar existe para dar todo o suporte necessário para as vítimas. O trabalho de monitoramento dos afetados ocorre durante todo o ano. “Antes funcionávamos como Fundação Leide das Neves, mas após duas reformas administrativas nos tornamos um Centro de Assistência que oferece diversos tipos de atendimentos médicos, odontológicos e psicossociais para que possamos monitorar as pessoas que foram vítimas do Césio 137. Pelo menos uma vez ao ano essas pessoas passam pelo C.A.R.A.”
O diretor alega que, desde a época do acidente, as 129 pessoas que foram confirmadas como vítimas diretas da contaminação passam por atendimento na unidade. Além disso, o diretor confirma que filhos e netos dessas pessoas junto com trabalhadores que ajudaram na descontaminação das áreas também são atendidas e recebem os mesmos auxílios que as vítimas diretas, que somados dão cerca de 1.143 pacientes. “Essas pessoas foram indenizadas e recebem pensões, plano de saúde do Estado sem cobrança extra de taxa para consultas, internações ou exames. Nós não oferecemos mais medicamentos, devido a mudança de Fundação para Centro de Assistência. A nossa unidade é ambulatorial e não emergencial”, declara o diretor-geral.
O diretor não confirma mortes em decorrência de gravidade pela contaminação com o Césio 137, mas relata que 22 pessoas foram diagnosticadas com rádio lesões, que são feridas que foram causadas pelo contato direto com a radiação. “Hoje contamos até com um tratamento de alto nível, que é a experimentação de células-tronco para a recuperação do tecido, mas obviamente, precisamos da adesão do paciente para a realização do processo”, destaca André.
O diretor afirma que nenhuma vítima do Césio oferece risco de contaminação e que determinadas campanhas para conscientização do preconceito são feitas regularmente. “Os técnicos fizeram a descontaminação de todas as áreas e o presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear Cnen da época afirmou em Senado Federal que Goiânia era uma cidade segura, não oferecia risco e que a radiação que existe no deposito de rejeitos é a mesma radiação em todos os ambientes. Nenhuma descriminação deve ser aceita em relação ao acidente, as áreas, a Goiânia e principalmente das 129 vítimas que são monitoradas diretamente”, salienta.
André frisa que o acidente foi grave e que a sua contribuição foi principalmente voltada para o rigor das leis de energia nuclear. “Relembrar para prevenir. Se podemos dizer que temos um legado foi em relação à legislação de energia nuclear. Aqueles aparelhos da época foram descartados de forma consciente. Os aparelhos atuais necessitam de carga elétrica para funcionar e sem ela, não oferece risco para os pacientes e operários da máquina. Esse evento conscientiza a população e não existe nenhuma sequela que não foi cuidada”, encerra o diretor.
Traumas
A psicóloga do C.A.R.A., Suzana Helou, conta que houve certa dificuldade de aceitação das vítimas para o desenvolvimento do seu trabalho. Segundo ela, muitas pessoas não entendiam qual seria o benefício de um psicólogo para a recuperação no meio daquela tragédia “No início houve um turbilhão de sentimentos. Havia muito medo, pânico e perda de identidades, já que objetos pessoais foram confiscados e a estrutura familiar foi desfacelada, uma vez que muitos foram separados de acordo com a radiação”, relata Suzana.
A profissional destaca que, mesmo com dificuldades, houve uma preocupação nas mudanças de humor e sentimentos que afetavam as vítimas. Algumas, segundo a psicóloga, desenvolveram depressão após a recuperação da tragédia. “Verificamos que algumas pessoas sofreram muito. Depois houve até uma certa euforia por serem sobreviventes da tragédia, e logo depois, algumas pessoas estavam triste e se sentiam sozinhas, o que acarretou a depressão. Isso acabou se tornando nossa prioridade, até mesmo com trabalho de visita em casa”, conta a psicóloga.
Nos dias atuais, Suzana conta que muitas vítimas sofrem de autopreconceito. Ela relata que o principal desafio após 30 anos de acidente é trazer as vítimas de volta para a realidade. “Muitas profecias catastróficas da época não aconteceram. Os filhos nasceram sem nenhum tipo de problema e não sofrem o preconceito ao qual esperavam que iriam sofrer. Um questionário que eu fiz no final do ano passado entre a população e os radioacidentados, mostra que 50% das vítimas se sentem descriminadas. No entanto, a população alegou em 80% que os radioacidentados não oferecem risco à sociedade. Cerca de 1% revelou ter medo”, descreve Suzana.