Saúde

Com doença autoimune, pacientes sofrem com falta de medicamento no Juarez Barbosa

A Constituição Federal estabelece em seu artigo 196 que “saúde é direito de todos e…

A Constituição Federal estabelece em seu artigo 196 que “saúde é direito de todos e um dever do Estado”. No entanto, essa pode não ser a realidade de quem necessita de remédios de alto custo em Goiás. É o caso de, pelo menos, 15 pacientes acometidos com Púrpura Trombocitopenica Idiopática (PTI), doença autoimune gerada por um descontrole da produção de anticorpos, os quais destroem plaquetas e ocasionam um índice elevado de sangramento em diversas regiões do corpo. Quem tem a versão crônica da patologia e depende diariamente do medicamento Revolade 50mg, cuja caixa com 14 comprimidos custa R$ 5.794, sofre os agravos da doença. Isso porque o remédio, cedido pelo estado – por meio de um Termo de Cooperação Técnica assinado em 2013 com o Ministério Público (MP) -, já não está nas prateleiras da Central de Medicamentos de Alto Custo Juarez Barbosa (Cemac), desde junho.

Segundo a própria Secretaria de Estado da Saúde (SES), 158 pessoas estão cadastradas para fazer retirada mensal do medicamento. Uma delas é Miramar Pires, 47, diagnosticada com PTI há quatro anos, mas que sofre com a doença há pelo menos uma década. Antes de iniciar o tratamento com o referido medicamento, a mulher tentou vários outros, sem sucesso. Há quase três meses sem o remédio, Miramar está cheia de hematomas, sinais das hemorragias que lhe afetam em razão do baixo número de plaquetas. Debilitada, a dona de casa depende da filha Letícia Pires, 22, para fazer tarefas básicas residenciais, razão pela qual a estudante de Direito não pode estagiar e obter renda extra para a família, que depende exclusivamente do pai, caminhoneiro.

Miramar mostra alguns hematomas provocados pela falta do remédio (Foto: leitor/Mais Goiás)

Letícia, que fala pela mãe, afirma não saber a quem recorrer. “Conseguimos o remédio através do MP, há cerca de quatro anos. Não é a primeira vez que falta. Faltou no fim do ano passado, justamente quando minha mãe teve dengue. O quadro se agravou, mas o tratamento foi retomado após um mês. Agora, seis meses depois, faltou de novo enquanto ela ainda se recuperava. Sabe aquele desespero que invade em momentos que não pode imaginar? Que sufoca, tira a luz, a vontade, a esperança? É por isso que passamos, não sabemos o que pode acontecer se a situação persistir”.

“Um leão por dia”

O servidor público aposentado, Miguel Bagageiro, 69, é outro paciente com PTI carente da medicação. Segundo ele, a médica foi clara: esse tratamento não pode ser interrompido. No entanto, ele sublinha que não consegue o remédio desde o dia 2/7 no Juarez Barbosa. “Liguei lá e não tinha. Desde então estou sem tomar. Dá sangramento na gengiva, não se sabe de onde vem o sangue, mas, quando é fé, vem o gosto e o cheiro na boca (sic)”.

Miguel afirma estar debilitado (Foto: leitor/Mais Goiás)

Além da hemorragia, ele afirma que a doença debilita. A gente fica sem resistência, fraco e exposto a doenças. Não temos imunidade. Se eu gripar é perigoso. Vai debilitando a gente, se as plaquetas caem muito, ficamos sonolentos, sem resistência física. É terrível. A gente tenta viver com normalidade, mas é matando um leão por dia”.

“Não deveria faltar”

A médica de Miramar, a hematologista Ana Márcia Fontes Campos, explica que o caso é grave. “Os sangramentos podem ocorrer no sistema nervoso, no abdome e em outras diversas regiões. Quanto mais baixo o número de plaquetas, maior o risco. Ela está sem medicação há uns três meses, motivo pelo qual a taxa vem caindo vertiginosamente. Quando estava em tratamento, tinha 150 mil plaquetas por milímetro cúbico de sangue, mas atualmente este nível está em 49 mil. No mês passado estava em 85 mil, então, é uma situação difícil”.

Ana Márcia ressalta que tudo pode se agravar caso a paciente se envolva em acidentes, mesmo em casa. “Se bate a cabeça, por exemplo, o risco de ter uma hemorragia interna e vir a falecer é muito grande. Outro risco é interromper o medicamento, que é de uso contínuo. Pode ser que o organismo dela crie resistência ao remédio o qual passa a não funcionar da forma como deveria, caso não tivesse havido interrupção. E o caso dela não é o único. Eu tenho mais dois pacientes passando por isso e participo de um grupo de hematologistas o qual tem, pelo menos, outras 12 pessoas nessas condições”.

Conforme expõe a médica, por se tratar de um remédio caro e difícil de obter, o tratamento nunca tem início com ele. “Este é o único que funcionou e a gente nunca pede este de início porque é muito caro e há chances do paciente apresentar melhoras com outros remédios. Só entramos com ele por causa da falha de tratamentos anteriores. A paciente tem que usar enquanto ela viver, não há motivo para interromper o fornecimento, já que emitimos um relatório (veja abaixo) para reforçar a condição da paciente ao Estado. Creio que este seja mais um caso de falta de planejamento. Estimo que 90% dos 158 pacientes citados pelo Estado tenham PTI”.

Segundo a médica, Eltrombopag é o princípio ativo de Revolade (Imagem: Ana Márcia Fontes Campos)

“Questão de planejamento”

De acordo com o promotor de justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional (CAO) da Saúde no MP de Goiás, Eduardo Silva Prego, o medicamento que eles precisam não consta na Relação Nacional de Medicamentos (Rename), lista com os princípios ativos que são de fornecimento obrigatório pelo governo estadual. Entretanto, pode ser fornecido.

“Para que este remédio fosse concedido, por via administrativa, estabelecemos o termo em 2013, por meio do qual o Estado se prontificou a adquirir, com o recurso de R$ 36 milhões, este e outros medicamentos de alto custo não registrados no Rename”. Entretanto, o recurso estadual, segundo apuração do CAO da saúde, se esgotou no mês de junho, e o estado cortou o fornecimento administrativo por ausência de orçamento.

Última caixa utilizada por Miramar (Foto: leitor/Mais Goiás)

No caso específico do Revolade, o promotor reforça que o Juarez Barbosa não está desabastecido por falta de recursos do termo, mas por atraso na compra. “Novo procedimento de compra, via licitação, foi feito e está sendo finalizado. Atualmente está na pendência da liberação de orçamento para aquisição”.

Eduardo completa, afirmando que, apesar da confusão, o termo prevê que o corte deve afetar apenas novas demandas pela medicação. “Ou seja, pacientes que já eram atendidos, como a dona Miramar, precisam continuar recebendo o remédio. Para resolver a situação, vamos estudar entrar com medida judicial para que a conta única do estado seja bloqueada e com o dinheiro, a paciente volte a se tratar. Podemos também entrar com ação de caráter coletivo, para evitar que o fornecimento desse e outros medicamentos com estoque baixo seja interrompido”.

O promotor ressalta que o problema decorre da falta de planejamento. “O ideal é que o Estado faça um planejamento dos remédios mais consumidos, com expectativa de crescimento inclusive daqueles que são judicializados. Isso é possível, sim. É só fazer uma compra com estoque maior, dentro da legalidade. No fim das contas, é tudo uma falta de planejamento”.

Repostas

Por e-mail, a SES afirma que 158 pacientes coletam o medicamento mensalmente, tanto via termo de cooperação como judicial e reconhece que o estoque está zerado desde junho deste ano. Para solucionar o problema, “foi feita uma tentativa de registro de preço, que restou deserta. Outro processo de registro de preço está em finalização. Além do processo de Registro de Preço, também iniciamos uma compra por inexigibilidade. Dessa forma, não temos como fazer uma previsão de chegada deste medicamento”.

Ainda de acordo com a pasta, alguns fatores dificultam a manutenção de estoque que não fazem parte dos atos normativos do SUS. “O planejamento das compras de medicamentos do Setor de Judicialização/Cemac é feito baseado nas demandas que chegam, via Termo de Cooperação de Técnica, ou via judicial, portanto, não é uma ação previsível, o que impede ao gestor o planejamento de suas ações. As aquisições já preveem uma reserva técnica de 20%, mas com a chegada de novos pacientes, esse quantitativo é rapidamente utilizado. Ainda, o processo licitatório demanda um tempo variável e existe um desinteresse crescente, por parte dos fornecedores, em participarem do processo licitatório”.

A empresa Novartis, responsável pela disponibilização do medicamento, se pronunciou em nota. “A Novartis esclarece que participa de todos os processos licitatórios e está trabalhando em parceria com a Secretária de Saúde de Goiás, em regime de urgência, para o fornecimento do medicamento Revolade”.