Silêncio. A palavra, repetida como orientação de conduta em quadros e cartazes pendurados por todos os lados da Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), retrata parte do cenário na cidade de pouco mais de 15 mil habitantes desde que vieram à tona denúncias de abuso sexual envolvendo um dos médiuns mais famosos do país.
Nas ruas, poucos moradores do município cuja economia gira em torno das atividades de João de Deus, nome pelo qual é conhecido o médium João Teixeira de Faria, 76, aceitam falar abertamente sobre o tema. Atribuem a decisão ao temor de represálias e ao silêncio também de João, que fundou a casa que funciona como hospital espiritual no município em 1976.
No sábado, no programa Conversa com Bial e pelo jornal O Globo, ao menos 13 mulheres acusam o médium de tê-las abusado sexualmente durante tratamento espiritual dentro do escritório que ele mantém em uma parte separada no local, a Casa Dom Inácio, que recebe mais de mil pessoas por dia. Neste domingo, o programa Fantástico revelou ter falado com 25 mulheres que se dizem vítimas do médium. Também ao Fantástico, uma promotora disse ter recebido mais de 200 acusações desde a revelação do caso. O Ministério Público de Goiás disse que já investigava denúncias ao médium.
As denúncias mudaram a rotina na cidade. No início da manhã deste domingo (9), o clima entre turistas e moradores era de incerteza. Enquanto a Casa tentava seguir as atividades programadas, brasileiros e estrangeiros que viajaram ao local em busca de tratamento espiritual se dividiam entre a defesa do médium e preocupação diante dos relatos. Os atendimentos de João de Deus ocorrem às quartas, quintas e sextas-feiras pela manhã e à tarde.
“Até então, tudo tem corrido bem. Mas quando vimos as notícias na TV, ficamos pensando: e se for verdade? E se ele for um charlatão?”, afirma Demir Ali Selen, 28, que veio da Turquia junto com os tios em busca de tratamento para o primo, de três anos, diagnosticado com câncer no cérebro. “É difícil ouvir sobre isso sabendo que levamos mais de 24h só para chegar até aqui. Essa é como se fosse a nossa última chance”, relata.
Apesar da incerteza, a mãe do menino, a dona de casa Sibel Ozture, 42, diz que não planeja desistir por enquanto do tratamento espiritual recomendado ao garoto para ser administrado junto com o tratamento médico.
Desde julho, quando a família fez a primeira visita ao local, o menino já passou por uma cirurgia invisível feita com orações, e toma comprimidos de passiflora adquiridos por R$ 60 na farmácia que fica no local. É de lá, além de uma livraria (que vende terços de R$ 10 a R$ 30 a pedras “energizadas” de até R$ 1.000), que vem parte da renda da instituição.
“O que vimos aqui é muito diferente do que ouvimos nos últimos dias”, afirma Sibel. “Também notamos que, todas as vezes em que passamos por ele [João de Deus], ele nunca faz contato com o olhar.”
Mulheres que fizeram as denúncias, no entanto, dizem que os abusos ocorreram após o médium as chamarem para conversas individuais em um espaço separado do restante da casa após o encerramento das sessões —e sempre quando estavam desacompanhadas. Lá, ele teria dito a algumas delas que precisavam de uma limpeza espiritual e que só ele poderia ajudá-las, relataram ao Globo e ao programa Conversa com Bial. Ao Fantástico, uma mulher disse ter sido estuprada aos 11 anos, ainda na década de 80.
Para a guia Andrea Tagliarini, 55, que coordena viagens da Argentina a Abadiânia há sete anos, a situação representa uma espécie de provação —não ao médium, mas a ela mesma e a outros frequentadores.
“Visitantes me mandaram mensagens preocupados”, diz Andrea, que mudou há um ano para a cidade goiana para trabalhar como guia e tradutora dentro da Casa Dom Inácio. “Encaro isso como uma provação não para o João, mas para nós vermos se nossa fé é verdadeira ou não. Meu afeto por ele está mais firme do que antes.”
Entre donos de hotéis e pousadas, a avaliação é que o impacto das denúncias deve ser visto com maior clareza na quarta-feira, próxima data marcada para atendimentos do médium.
Nestes dias em que há atendimento por João de Deus, pessoas que chegam à Casa em busca de cura fazem filas separadas pela fase da visita (há uma para fiéis de primeira viagem e outra para retornos). O médium pode conversar com o visitante ou ficar calado.
Em alguns casos, ele entrega um rabisco em um papel, que indica a necessidade de terapia à base de passiflora com energias. Em outros, indica cirurgias que podem ser visíveis ou invisíveis (as visíveis, com cortes, são feitas apenas a pedido do paciente, informa o site da instituição).
Em todos os momentos, João afirma ser guiado por “entidades” que incorpora —entre elas, está Santo Inácio de Loyola, que tem uma estátua dedicada a ele no centro da Casa.
Desde que apareceu na TV em programas como o da apresentadora americana Oprah, os atendimentos do médium atraem visitantes de diferentes partes do mundo.
Uma funcionária de uma pousada próxima à Casa relata à Folha que ao menos três pessoas que planejavam chegar na terça-feira já avisaram: podem desistir da reserva. “Disseram que esperam um depoimento dele para decidir o que fazer”, diz a funcionária, que pede para não ser identificada.
Na manhã deste domingo, ao menos 70 pessoas, a maioria estrangeiros, se reuniam em uma das salas da Casa para fazer orações (intercaladas em alemão, inglês e português) e cantar músicas como “Let it be”, “Amazing grace”, “What a wonderful world” e “Segura nas mãos de Deus”.
Enquanto esperava na saída, a vendedora de toalhas de mesa Marlene Soares, 40, diz ter estranhado o movimento um pouco menor do que o costume neste domingo. Em geral, diz, a maioria dos brasileiros chega na terça-feira, enquanto estrangeiros costumam se estender por mais de uma semana. “Sempre vendo alguma peça. Mas hoje ainda não vendi nenhuma.”
Abordada pela reportagem, algumas das pessoas que frequentavam o local diziam não saber das denúncias de abuso ou ter ouvido apenas rumores. Alguns, assustados, evitaram comentar. “Se for verdade, não quero ter meu nome envolvido nisso”, disse uma turista estrangeira.
Outros saíram em defesa do médium. Voluntário na casa há 19 anos e dono de uma pousada na cidade, o brasileiro Norberto Kirst, 75, afirma que João é um homem comum, mas com uma missão espiritual.
“O que está sendo falado é sobre o homem João. Jesus já disse: quem puder que atire a primeira pedra. Mas hoje vemos que são jogadas pedras em cima de todo mundo”, diz. “A verdade é mesmo como estão falando? Ou é mentira ou recalque? João já respondeu a processos. Se tudo que já foi dito é verdade, ele não teria sido absolvido”, completa.
“A verdade é só Deus quem sabe”, disse uma canadense de 38 anos que não quis ter seu nome revelado. “Mas a minha experiência foi positiva. Estou rezando para que ocorra o melhor para todos.”
Para Guy Ribbens, 57, que veio da Bélgica há uma semana para tentar fortalecer sua espiritualidade, “o futuro vai mostrar quem está certo”. Por enquanto, diz, não pensa em desistir da viagem. “Ouvi rumores nessa manhã, mas para mim nada muda. O que você faz de bom ou mal, é você quem vai pagar por isso.”
OUTRO LADO
Em nota enviada ao programa Conversa com Bial, da TV Globo, que relevou o caso, a assessoria de imprensa do médium afirmou o seguinte: “Há 44 anos, João de Deus atende milhares de pessoas em Abadiânia, praticando o bem por meio de tratamentos espirituais. Apesar de não ter sido informado dos detalhes da reportagem, ele rechaça veementemente qualquer prática imprópria em seus atendimentos”.
Ao jornal O Globo, a assessoria disse que as acusações são “falsas e fantasiosas” e questiona o motivo pelo qual as vítimas não procuraram as autoridades. Ainda afirma que a situação é “lamentável, uma vez que o Médium João é uma pessoa de índole ilibada”.
Ao Fantástico, o advogado de João de Deus, Alberto Toron, disse que o médium nega as acusações, recebidas com indignação. Toron diz ainda que João está à disposição da Justiça para ser ouvido a qualquer momento.
A Folha tentou contato com a assessoria e defesa do médium, mas até o momento não recebeu resposta.