Dia da Mulher

Discutindo o feminismo

Neste Dia Internacional da Mulher, conversamos com a Doutora Eliane Gonçalves sobre o movimento

A atriz britânica Emma Watson posou para as lentes do fotógrafo de moda Tim Walker, para a edição de março revista Vanity Fair. Em suas aparições recentes para a divulgação do filme A Bela e a Fera, ela acabou sendo pega de surpresa por uma polêmica provocada por uma das fotos: coberta somente por um xale vazado, ela aparece sem sutiã, e a embaixadora da boa vontade da ONU Mulheres foi considerada “antifeminista”.

“Isso sempre me mostra quantas concepções equivocadas e quanto mal-entendido existe sobre o que é o feminismo”, disse ela em entrevista à publicação neste domingo (5). “O feminismo diz respeito a dar escolhas às mulheres. O feminismo não é uma vara para bater nas outras mulheres. Ele diz respeito à liberdade, diz respeito à libertação, diz respeito à igualdade”.

Por fim, resumiu: “Eles estavam dizendo que eu não poderia ser feminista e ter peitos”. Watson tem razão ao ficar confusa. O termo ainda muita desconfiança e até um sentido pejorativo para quem desconhece o verdadeiro significado.

Feminismo é o contrário de machismo?

Para a Professora Eliane Gonçalves, Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), docente da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade Ser-Tão, é mais fácil compreender refazendo a pergunta.

“O que é o machismo? É a discriminação das mulheres porque os valores são diferentes, a violência contra a mulher, as posições sociais subalternas das mulheres, etc. E o que é o feminismo?”, questiona. “É a luta por direitos iguais, por emancipação das mulheres e toda a humanidade”.

Para Gonçalves, “o feminismo é um movimento social e uma perspectiva de mundo que nasce exatamente da percepção da desigualdade. O machismo é a manutenção dos privilégios que as mulheres feministas contestam”.

Feministas odeiam os homens?

“Feministas continuam sendo filhas de homens, esposas de homens, mães de homens, como podem odiar os homens? Seria necessário que metade da humanidade odiasse a outra metade”, explica. “Não se trata de ódio aos homens, mas, se quisermos manter a palavra ‘ódio’ para dar força, ou talvez ‘raiva’ ou ‘indignação’, à desigualdade, às diferenças de tratamentos, aos privilégios”.

As mulheres não eram mais felizes antes do feminismo?

É possível, diz a professora, se estivermos falando de romances e príncipes encantados. Na realidade, a questão é mais profunda: “Qual é a felicidade que nós estamos medindo? Essas mulheres não existem. De que mulheres nós estamos falando: das trabalhadoras rurais, que pariam 10, 15 filhos antes dos anos 60, 70, das sindicalistas, das operárias, das professoras, das freiras, das mães, donas de casa, mulheres que trabalham sem nenhuma remuneração e sem nenhum reconhecimento? Quais eram as mulheres mais felizes, as que não tinham direito a escolher sobre os filhos, não tinham direito ao divórcio, ao trabalho, à educação, quem eram as molduras da casa? ”.

O feminismo quer destruir a família?

“Quer. Essa família que educa diferente meninos e meninas, que põe privilégios nos meninos, que acha que a mulher tem que ser subordinada, segunda voz, terceira voz, nunca ouvida – essa família tem que ser destruída mesmo. Esse jeito de pensar a família. Mostre uma família que seja normal, ou ‘estruturada’. As maiores violências e abusos estão dentro de casa, e essa família o feminismo quer destruir, sim. O sexismo, os privilégios, o silenciamento das mulheres e toda a forma de violência nessa família que aparece como mito precisa ser destruída”. Não significa que não devem haver famílias, mas que elas não podem permitir e mascarar esses problemas.

As feministas não são muito radicais?

“As feministas precisam ser radicais. Se não forem, não vão conquistar nada. Ser radical é insistir em uma coisa como as feministas estão insistindo há mais de dois séculos: direitos iguais. E é preciso ter alguma radicalidade para conseguir isso. Radicalismo não é extremismo; é insistir em algo que ainda não foi conquistado”.

“Sem radicalidade nós não teríamos chegado nem na educação igualitária, como não vamos chegar nos salários iguais, em respeito ao trabalho, aos direitos sexuais e reprodutivos que estão longe de serem respeitados pelas constituições de vários países”.

Homens podem ser feministas?

“Os homens não podem ser protagonistas desse movimento; as mulheres são o sujeito que fala por ele. Mas sem os homens para nos apoiarem na luta, e lutarem lado a lado, a gente não vai chegar muito longe. Estamos na etapa de abraçar o transfeminismo, as crianças, todos são necessários. O que não dá é os homens falarem no feminismo por eles e pelas mulheres, porque é uma questão de lugar”.

“Eles são bem-vindos: os homens transsexuais, cissexuais, gays, heterossexuais, mas identificados com a causa. Que lavam prato, cuidam de crianças, dividem tarefas domésticas, respeitam as mulheres. Os homens feministas precisam dar muito mais exemplo do que as mulheres. Precisam ter dignidade suficiente para usar esse nome provando que são, e isso dá muito trabalho, porque é preciso fazer uma vigilância sobre si mesmo”.

“Acho que os rapazes e meninos sofrem muito. O dia que eles acordarem para a quantidade de sofrimento que eles carregam, vão todos virar feministas. É impossível para os homens aguentar o mundo tão sexista. “

Em pauta

Para a pesquisadora, o movimento está mais disseminado, em um momento propício para a discussão: “O feminismo tem uma ampla penetração discursiva hoje. Está muito mais fácil falar de feminismo hoje, o que não quer dizer que as coisas estejam melhores. Tem feminismo lá na pontinha da periferia, tem feminismo no Congresso Nacional, tem na universidade, entre jovens, nas redes sociais, em Hollywood, na ONU, nos países islâmicos, na África, na Índia, em todos os rincões no mundo”.

Enquanto a informação chega mais rapidamente, permanecem as reivindicações. Algumas se mantêm para todas, como divisão do trabalho doméstico, políticas de proibição da violência mais severas e direitos sexuais e reprodutivos. Outras, segundo a professora, são plurais, uma vez que o próprio movimento é diverso e sem consenso.

“Para as jovens da periferia, é preciso segurança, liberdade de ir e vir, direito de estar na cidade com os seus corpos, trabalhar, namorar e maternar em paz, estudar em paz, andar de ônibus em paz, enfim. Esse é um direito muito sagrado que não está sendo percebido. O direito de usufruir de liberdade”, reflete. “Para as executivas, é salário igual para trabalho igual. Para as trabalhadoras do campo, é o direito à propriedade. As mulheres negras têm necessidades diferentes, porque elas têm marcas de opressão combinadas, que são o racismo e o sexismo”.

“A gente tem que voltar a pensar o oito de março como um espaço de significado para a luta das mulheres”, conclui.

Em números

– De acordo com o último relatório da ONU, baseado em dados do Ministério da Saúde sobre feminicídio, o Brasil é o quinto país a mais matar mulheres no mundo;

– Segundo a Unesco, 16 milhões de meninas entre 6 e 11 anos nunca serão alfabetizadas. Número é o dobro do que o registrado para os meninos;

– O salário das mulheres é, em média, 24% mais baixo do que dos homens, diz a ONU Mulheres;

– No Legislativo, as mulheres representam 9,9% das cadeiras, uma média inferior aos países do Oriente Médio, colocando o Brasil no 116º lugar no ranking mundial;

– Uma em cada três mulheres no mundo já foi vítima de violência física ou sexual, diz relatório da ONU. 120 milhões de meninas já foram estupradas e 133 milhões de mulheres e meninas sofreram mutilação genital.