APLICATIVOS

Entregadores de app carregam pratos de R$ 100 e almoçam comida fria

Entregadores ouvidos pela Folha afirmam que na maior parte dos dias, ter uma brecha nas jornadas, que chegam a durar até 14 horas, e almoçar é algo inimaginável

Câmara aprova projeto que obriga app a pagar por 15 dias entregador afastado por Covid - (Foto: Marcelo Casal Jr. / Agência Brasil)

Dentro da mochila térmica do aplicativo vai o prato principal: Ribs on the Barbie –uma peça de costela “preparada em chama aberta como manda a tradição australiana”, marinada “com um mix secreto de temperos”, e “as saborosas Cinnamon Apple”.

E o acompanhamento: Aussie Mac N’ Cheese, uma “pasta caracolina com creme de queijos e crumble de crouton”.

Num bolsinho do lado de fora da mesma mochila: um sanduíche de pão de forma como apresuntado e queijo. Bebida não acompanha a refeição nesse dia.

Passam das 14h de sábado (18), e o entregador ainda vai fazer mais duas corridas antes de voltar para uma das entradas do shopping Higienópolis (zona oeste de São Paulo), parar por 10 minutos enquanto aguarda uma nova chamada e comer seu sanduíche em cima da moto.

A nota fiscal dos pratos do restaurante Outback Steak House que ele carrega revela que a refeição custou R$ 131,89, já com a taxa de R$ 7,99 pela entrega, valor que não ficará integralmente com ele.

O sanduíche de queijo e apresuntado, claro, não tem nota fiscal, mas ele garante que custou menos de R$ 10 para prepará-lo.

Se o cardápio e o lugar em que os entregadores se alimentam fossem indicativos de status na profissão, ele até que estaria bem. Afinal, não come sentado na calçada e tampouco no meio-fio.

Além disso, o homem, de 38 anos, que pede para não ser identificado, pois diz temer ser cortado do aplicativo, consegue parar e comer.

Para muitos de seus colegas, isso é um luxo. Entregadores ouvidos pela Folha afirmam que na maior parte dos dias, ter uma brecha nas jornadas, que chegam a durar até 14 horas, e almoçar é algo inimaginável.

Entre os pratos principais: coxinhas, sanduíches de presunto e queijo, pão com manteiga, marmitas frias de arroz com apenas um acompanhamento, bolachas e salgadinhos em geral. Arroz e feijão? Só quando vou comer na minha mãe, diz o entregador.

“Geralmente, eu paro em algum lugar, compro uma bolacha e vou beliscando durante o dia”, diz Kléber Isaias, 45, entregador há apenas três meses e ex-taxista, enquanto apanha a comida de alguém nos fundos do restaurante Nou, em Higienópolis.

Suas jornadas costumam se iniciar por volta das 10h e se estendem até as 22h. Muitas vezes, não consegue parar para comer.

O neófito entregador é um dos tantos brasileiros afetados pelo baque econômico da pandemia do novo coronavírus.

Segundo o IBGE, 7,8 milhões de postos de trabalho, até maio, foram destruídos no Brasil. Dentre os postos perdidos, 5,8 milhões são de empregos informais, que somam os empregados sem carteira assinada e os por conta própria.

A mesma recessão que colocou um sem número de trabalhadores em motos e bicicletas fazendo entregas, deu à categoria relevância nunca antes vista.

No dia 1º de julho, uma paralisação reuniu cerca de mil profissionais em São Paulo, segundo o sindicato da categoria, e durou mais de sete horas. O protesto foi nacional e pedia taxas mais justas aos apps e ajuda como itens básicos de proteção durante a pandemia do coronavírus.

Muitos entregadores fazem as refeições juntos, sentados na calçada, sem qualquer condição de higiene.

Em uma esquina da avenida Rebouças (zona oeste), quase no cruzamento com a av. Faria Lima, cerca de 20 esperavam os pedidos de uma hamburgueria no sábado. Por ali, ninguém tem moto, só bicicletas –muitas delas alugadas.

São, na maioria, jovens que se alimentam no meio-fio, embaixo de uma árvore. Guilherme Carvalho dos Santos, 30, é um deles. Naquele dia, por volta das 15h, abriu sua marmita com arroz e filé de frango frito e comeu sob o sol –a sombra da árvore já estava lotada.

Do outro lado da rua, o mais velho do grupo, Carlos Alberto, 53, morador do Jardim Ângela, na zona sul, ostentava. Ele havia recebido uma marmita gratuita de um restaurante. “Arroz, carne moída e jerimum. Se não fosse isso não ia comer nada.”

O prato é uma raridade. Arroz com linguiça e arroz com frango são os carros-chefes das marmitas que se destampam por ali. “Já levei comida de R$ 400 por aí. Só o cheiro e você fica louco, cara”, diz Guilherme Jhonatas, 28, que faz entregas para o Ifood e Rappi.

Um homem de peso e estatura medianas, ou seja, 1,70m e 70 Kg, precisa ingerir durante o dia entre 2.000 Kcal e 2.500 Kcal, explica a nutricionista Luisa Amendola Mascarenhas. “Desse total, o ideal é que 55% seja composto por carboidrato (massas e arroz, por exemplo), 25% proteína (como as carnes) e o restante lipídio de boa qualidade”, diz.

–o que está longe de ser ideal para quem vive no trânsito.

“Sem contar que eles acabam comendo de qualquer jeito e podem contrair uma doença e entrar em contato com o coronavírus”, diz.

Segundo o Ifood, a empresa vem desenvolvendo, desde o dia 15 deste mês, pontos de apoio para os entregadores, em restaurantes cadastrados.

“Nos locais, estão disponíveis água, banheiro e álcool em gel fornecido pelo iFood. Os restaurantes podem ainda oferecer aos entregadores snacks e café”, diz.

Segundo a empresa, para evitar aglomerações nesse momento da pandemia, os espaços ficam disponíveis aos entregadores que recebam pedidos no restaurante.

“Atualmente, as regiões de São Paulo e Grande São Paulo já contam com mais de 30 pontos de apoio e o iFood atua para expandir essas parcerias”, diz a empresa.

A Folha não conseguiu contato com o Rappi para esta reportagem.

A boa notícia para os entregadores é que nem tudo parece perdido. Neste mês, em comemoração à Queda da Bastilha, o restaurante francês Le Jazz fez uma a promoção em que a cada Cassoulet (R$35) vendido, o entregador ganhava um voucher para comer o mesmo prato. Segundo a casa, 200 refeições foram servidas a eles.

Para um adolescente de 15 anos que diz usar a conta de seu pai para trabalhar em ambos os aplicativos, isso é coisa que ele nunca viu. No entanto, dá de ombros. “Não ligo para essas comidas que carrego, não. Até no Outbeck já comi”, diz rindo.​