Falhas no reconhecimento de suspeitos ocasionaram prisões injustas em Goiás
Estudo da Condege identificou 90 casos de prisões injustas em 10 estados do país. Dois deles aconteceram em Goiás
Um jovem de 21 anos, cadeirante, ficou detido por dois meses por um crime que não cometeu: roubo de carro de um motorista de aplicativo, em Aparecida de Goiânia. Outro jovem, de 23 anos, também ficou preso por seis meses por suspeita de roubo de carro, em Goiânia. O motivo: estava no horário e no local do crime e já tinha condenação por outro crime.
Esses dois casos de prisões injustas aconteceram em 2020 e tem algo em comum: a falha no reconhecimento fotográfico realizada nas delegacias de polícia do estado. Eles foram descobertos graças a um levantamento feito pelo Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), em parceria com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ). O estudo reuniu casos comprovados pelas defensorias de todo o país de erros na identificação de suspeitos.
O relatório do estudo foi publicado em fevereiro deste ano e apurou que 90 casos semelhantes aconteceram em 10 estados entre os anos de 2012 e 2020. De acordo com o documento, em 81% dos casos as pessoas eram negras. Todos eles foram absolvidos pela justiça, não sem antes ficarem detidos por um período médio de nove meses.
Reconhecimento no inquérito
Leonardo César Luiz Stutz, titular da 1ª Defensoria Pública Especializada Criminal da Capital, disse ao Mais Goiás que os casos listados pelo estudo são referentes apenas aos comprovadamente identificados pelas defensorias e que podem haver mais. o defensor afirmou que erros como esse costumam surgir na fase do inquérito, ou seja, durante a investigação feita pela Polícia Civil (PC).
“Normalmente tem uma descrição e a partir dali já é feito um termo de reconhecimento. Não se vê outras fotos, se é que são apresentadas. O reconhecimento sozinho, sem qualquer outra prova, não deveria ser a regra”, disse o defensor.
O advogado e professor Danilo Vasconcelos concorda com o defensor. Ele contou à reportagem que vários erros de reconhecimento acontecem também durante o processo judicial.
“Existem casos em que uma pessoa é presa em flagrante, por exemplo. Ela é colocada para ser reconhecida sozinha, algemada e dentro do camburão. A polícia chega e fala ‘foi esse aqui, né?’. Esse tipo de postura induz a vítima a falar que ela foi autora do crime. Isso também acontece durante o julgamento. Juízes colocam seus assistentes ao lado dos suspeitos para identificação e frequentemente eles são reconhecidos como autores. Advogados negros já foram reconhecidos de forma equivocada. As vítimas não se lembram, tem falsas memórias, se enganam”, disse Danilo.
Como resolver?
Para Leonardo Cesar, é fundamental que o reconhecimento da vítima não seja o único elemento utilizado como prova, especialmente nas prisões em flagrante. “Criou-se a cultura de que, nas prisões em flagrante, a investigação está concluída com o reconhecimento da vítima. Sempre que for possível, é necessário buscar outros elementos de prova. Falta um pouco de cuidado na hora de valorar esse reconhecimento. Existem vários cuidados que a gente tem que ter antes de falar que o reconhecimento é seguro”.
Danilo acredita que o problema está no descumprimento do Código de Processo Penal (CPP). “A primeira coisa é seguir a lei. O CPP fala que tem que colocar várias pessoas semelhantes uma do lado da outra. É como nos filmes americanos. Mas isso não é feito. Não se pode basear tudo exclusivamente no reconhecimento da vítima. A justiça, às vezes por preguiça, confia muito na palavra da vítima”.
O gerente de Planejamento Operacional da PC de Goiás, Rilmo Braga, reconhece que usar o reconhecimento da vítima como única prova não é o ideal. Ao Mais Goiás, ele afirmou que os agentes e delegados da Polícia Civil são treinados para que esse curso não seja o único a ser utilizado.
“Tanto na doutrina policial quanto na jurisprudência, é unanimidade que o reconhecimento é um elemento frágil por uma série de motivos. Seja pelo lapso de tempo, pela falibilidade humana em memorizar traços de criminosos em momentos de tensão, abalo psicológico da vítima, alterações como barba, corte de cabelo, tatuagem. O problema é tratar o reconhecimento como prova. Ele não é prova. É um elemento para você ir atrás de mais provas. Todos os delegados e agentes são instruídos sobre essa questão na Escola Superior da Polícia Civil“.
Rilmo ressaltou também que esse problema é causado, muitas vezes, por falta de estrutura, mas que esses casos não são frequentes. “O certo é o delegado pegar cinco fotos de pessoas com características semelhantes e apresentá-las para as vítimas. Em delegacias, por falta de estrutura, ou mesmo de zelo, só uma pessoa é mostrada. Isso acaba acontecendo em algumas ocasiões. Se eu indicio uma pessoa só por reconhecimento fotográfico, o indiciamento é irregular, é falho. Apenas se ele for corroborado por outros elementos ele pode ser tratado como uma prova”.