DIA DA MULHER

Heroínas da vida real: a luta daquelas que se dedicam para salvar mulheres em Goiás

Conheça a história de três mulheres que dedicam suas vidas à luta contra a violência a violência de gênero em Goiás

O Dia das Mulheres segue sendo uma data sem muitas comemorações diante do cenário de violência doméstica em Goiás. Nos últimos quatro anos, o estado vivenciou uma escalada de feminicídio. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-GO), 36 mulheres foram mortas por condição de gênero em 2018. O número saltou para 57 em 2022. No ano passado, também houve 322 vítimas de estupro; 15,6 mil de ameaça; 11,2 mil de lesão corporal e 11,2 mil vítimas de crimes contra a honra. No território goiano, a luta feminina pela sobrevivência é acompanhada de perto por três mulheres distintas, que se dedicam para salvar a vida de outras mulheres. As lutas, dificuldades e desafios são revelados neste especial de 8 de Março. 

Comandante do Batalhão Maria da Penha em Goiânia, major Marineia Mascarenhas, 44 anos. Titular da 1ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher da capital (Deam), delegada Ana Elisa Gomes, 40. Diretora do Centro de Valorização à Mulher (Cevam), Carla Monteiro, 60 anos. Três pessoas em funções e idades diferentes, que têm um propósito em comum: proteger mulheres da violência doméstica e do feminicídio, que chega a números alarmantes em Goiás.

Infográfico: Niame L./Mais Goiás

À frente do Batalhão Maria da Penha há sete meses, a major Marineia tem vivido dias intensos na proteção das mulheres. Ao Mais Goiás, ela reconhece que está diante de um dos maiores desafios da vida: comandar um batalhão, situação rara na PM, já que a função, em geral, é assumida por homens. Segundo a militar, a rotina de trabalho é pesada e árdua, pois lida direta e diariamente com casos de agressão.

“É um serviço com o qual você acaba se envolvendo emocionalmente. A gente toma as dores, veste a camisa e luta com unhas e dentes pelas mulheres agredidas. Fazemos um trabalho de proteção, de acompanhamento da medida protetiva. Por isso é tão pesado, mas, ao mesmo tempo, gratificante por saber que conseguimos salvar vidas com orientações, apoio, acolhimento e inibindo a presença do agressor”, disse.

De acordo com a major, durante o trabalho, ela atua contra os cinco tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha: a física, sexual, patrimonial, moral e psicológica. Para Marineia, salvar outras mulheres destas agressões também é uma forma de curar as próprias feridas. Ela relata que já sofreu violência psicológica e já presenciou agressão física dentro da família.

“Creio que toda mulher já passou no mínimo por violência psicológica. É uma dor que a gente carrega para o resto da vida. Consegui trabalhar isso internamente para romper o que vinha acontecendo de geração em geração. Hoje uso isso como motivação para atuar e coibir crimes contra as mulheres”, destacou.

Arte: Niame L./Mais Goiás

Conforme expõe a comandante, além de atuar no combate aos crimes de agressão e acompanhamento de mulheres que possuem medida protetiva, o Batalhão também trabalha com ações preventivas nas escolas, com palestras acerca da violência doméstica. “É um trabalho informativo para mostrar às crianças e adolescentes que isso não é normal. É crime. E que se acontecer, que a mulher precisa denunciar”.

Marineia aponta que a atuação do batalhão Maria da Penha em Goiânia, o único em todo o país, é fundamental contra as agressões, e, principalmente contra o assassinato feminino. Isso porque, segundo ela, desde 2015, quando a Patrulha Maria da Penha da capital foi transformada em batalhão, nenhuma mulher assistida pelas equipes em questão foi vítima de feminicídio.

“É uma atuação de extrema importância porque, de certo modo, o agressor se inibe de tentar agredir a vítima novamente e até mesmo de matá-la. Ajudar a garantir a segurança de tantas mulheres é um grande presente. As dores que a gente carrega vão se esvaindo quando salvamos essas vítimas”, disse.

Corporação diferente, propósito igual

De outro lado, em uma corporação diferente, mas com o mesmo propósito, está a titular da 1ª Deam e futura Delegacia Estadual de Combate à Violência Contra a Mulher, Ana Elisa Gomes Martins, de 45 anos. Delegada de Polícia Civil desde 2004, ela atuou na luta contra a violência doméstica por seis anos, entre 2012 e 2019. Há cerca de um mês, reassumiu o posto e segue na missão de proteger.

Segundo ela, no pouco tempo de retorno à Deam, notou que, apesar de três anos longe, as mulheres seguem sendo agredidas, violentadas e humilhadas. De acordo com a investigadora, é inegável que o volume de crime é maior do que no período que ela passou pela delegacia pela primeira vez.

“É inegável que os índices cresceram porque os crimes aumentaram. Precisamos encarar isso. Mas há, também, o fator de denúncia. Hoje as mulheres felizmente denunciam muito mais. Isso tudo faz com que esses números aumentem”, comentou.

Ser mulher é viver com medo

Durante os anos de atuação, Ana Elisa ressalta que os crimes que mais a chocam como mulher e como delegada são os de estupro. Para ela, que já atuou para desvendar estupradores em série em Goiânia, o referido crime é inaceitável em uma “sociedade tão moderna e cheia de informação como a que vivemos”. 

“Nós andamos na rua com medo de sermos estupradas. Você precisa se preocupar com a roupa que está, se saiu cedo de casa para o trabalho ou se está voltando muito tarde. Infelizmente todas nós estamos sujeitas. E é isso que causa indignação. Um homem achar que está no direito de atacar uma mulher para satisfazer seu desejo”, criticou. 

Ainda de acordo com ela, o trabalho como titular da Deam é necessário para garantir a segurança das mulheres, evitar e coibir casos de estupro e violência no geral. “Essa delegacia é um marco. Há 30 anos desempenhando um trabalho fundamental em prol das mulheres, de dedicação ininterrupta, 24h por dia. Ele abriu portas para outros trabalhos, como a Patrulha Maria da Penha, por exemplo”, disse. 

E completou: “a delegacia que, em breve se tornará estadual, vai progredir ainda mais no atendimento humanizado e na capilaridade. Ainda há muito a ser feito e, com certeza, faremos”, garantiu.

Vida pessoal x trabalho

Nos seis anos à frente da Deam, Ana Elisa afirma que dedicou noites e finais de semana inteiros pela vontade incansável de fazer justiça pelas vítimas. Foram milhares de prisões de agressores e estupradores de mulheres.

Agora, novamente na titularidade da delegacia, o objetivo é o mesmo: proteger as vítimas e deter os autores. A realidade atual, no entanto, é diferente, já que agora possui uma filha de quase 2 anos.

“Tenho me virado porque são dois amores e duas missões de vida. O nascimento da minha filha me deu uma responsabilidade ainda maior. Quero que ela cresça em um ambiente mais seguro, com menos violência. Minha atuação é por todas as vítimas e também pela minha filha, para que ela viva em ambientes sem preconceito e que valorizem a mulher. Minha luta e compromisso é para que mais de nós ocupem espaços de poder e de liderança sem sermos subjugadas”.

Luta por empoderamento

Fora do campo da segurança pública, mas diretamente ligada ao trabalho de proteção feito pela major Marineia e delegada Ana Elisa, encontra-se Carla Monteiro, 60 anos. Jornalista, escritora, historiadora e atual diretora do Centro de Valorização à Mulher (Cevam), ela luta pelos direitos femininos há cerca de 36 anos.

Engajada desde cedo com movimentos sociais e estudantis, Carla afirma que se reconheceu e se identificou no movimento feminista. Para ela, o ser humano pode atuar de duas formas na sociedade: pela omissão ou participação. A ativista decidiu lutar: batalhar por mulheres, pelos direitos femininos, e pelo fim da desigualdade e violência.

Carla avalia que o cenário de preconceito e agressão no qual as mulheres ainda estão inseridas é fruto de uma herança cultural que considera o ser feminino como propriedade. Assim, segundo ela, uma mudança só pode ser feita com base na educação e desconstrução de pensamentos que inferiorizam as mulheres.

Essa é justamente a luta da jornalista. “Nosso movimento é para construir crítica. Nossa luta é para empoderar mulheres. Para que todas tomem consciência, sejam donas de si. Mulher não é propriedade e precisa ser respeitada”, disse.

Ao longo dos 36 anos de batalha pelos direitos femininos, Carla já se deparou com centenas de casos de violência. Já pensou em desistir da luta. Parou; refletiu. Lembrou da história que mais marcou sua vida. A da amiga Consuelo Nasser, umas das fundadoras do Cevam, que tirou a própria vida em 2002.

“Foi o caso mais emblemático, pois vi, convivi e levei minha amiga para a sepultura. Ela era uma pessoa doce e generosa. A vida conjugal quebrou essa mulher. Ela foi abusada moral, sexual e fisicamente. Apesar de tudo que viveu no casamento, sempre se manteve resiliente. Sempre que penso em desistir, lembro dela e a força vem novamente”, ponderou.

Cevam

Além do trabalho por mudanças culturais, Carla Monteiro também atua diretamente na proteção das mulheres. Isso porque é uma das responsáveis pelo Cevam, lugar que acolhe e auxilia vítimas de violência. Segundo ela, o local não tem como objetivo apenas ‘esconder’ as mulheres de seus agressores. O intuito é empoderar as vítimas e tirá-las da posição de reféns, tornando-as novamente protagonistas de suas vidas.

De acordo com a ativista, o Centro de Valorização possui serviços culturais, com atividades de teatro, dança e música, ofertadas pelo projeto Flores do Cerrado; atendimento jurídico, de saúde, psicológico e de reinserção, em que as assistidas e abrigadas são capacitadas para o mercado de trabalho.

“É um trabalho árduo. Precisamos de muito apoio, já que somos um lugar de acolhimento 100% gratuito. Lutamos para conseguir atividades, serviços e comida para as abrigadas e assistidas. São mulheres que chegam quase que sem perspectiva e saem renovadas. Esse é o verdadeiro sentido da nossa luta. É o que faz tudo valer a pena”.