Marconi ignorou alerta sobre armas e recomendação de ‘varredura’ nos 2 presídios palcos de rebelião
Inspeção de março de 2017, feita pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, apontou necessidade de buscas do Exército na Colônia Agroindustrial
A possibilidade de haver briga entre facções criminosas e armas – inclusive de fogo – em poder dos detentos das penitenciárias onde houve rebelião em Goiás, nesta semana, já era conhecida pelo governo goiano desde março de 2017. As informações constam do relatório de inspeção elaborado há quase um ano pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão ligado ao Ministério da Justiça.
No documento, ao qual a BBC Brasil teve acesso, os conselheiros que realizaram a vistoria recomendam ao governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), que solicite ao Ministério da Defesa e ao Ministério da Justiça uma “varredura” do Exército para verificar a existência de armas tanto na Colônia Agroindustrial quanto na penitenciária Coronel Odenir Guimarães, ambas em Aparecida de Goiânia.
Mas o governo de Goiás não fez o pedido, segundo o Ministério da Defesa. Na última segunda-feira, uma violenta rebelião detonada na Colônia Agroindustrial deixou 9 mortos, 14 feridos e 99 foragidos.
Entre os 14 feridos, dois foram atingidos por arma de fogo, mas não se sabe se os disparos foram feitos pelos presidiários ou pelas forças de segurança que tentavam conter o levante. Uma nova rebelião no mesmo presídio foi controlada na quinta. Nesta sexta, a rebelião aconteceu na Penitenciária Odenir Guimarães – não há, até o momento, informações sobre mortos ou feridos no incidente.
A inspeção do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária nesses dois presídios foi realizada entre os dias 28 e 30 de março do ano passado. O documento também acusa o Estado de Goiás de não prestar “assistência material mínima” aos detentos e menciona imensa superlotação, falta de higiene e de atendimento médico e escassez de comida em ambas as prisões.
“Diante da notícia de que presos estariam com arma de fogo na Penitenciária Coronel Odenir Guimarães e Colônia Agroindustrial, bem como diante de notícia de tiroteio amplamente divulgada na mídia (referência a um motim ocorrido em fevereiro de 2017), recomenda-se que seja verificada a necessidade de solicitação ao Ministério da Defesa e Ministério da Justiça e Segurança Pública de varredura pelo Exército Brasileiro”, diz o relatório de inspeção, no trecho que trata de “providências e recomendações” ao governador do Estado de Goiás.
O Ministério da Defesa disse à BBC Brasil que não recebeu qualquer solicitação do governo de Goiás e que, portanto, não fez a varredura em nenhuma penitenciária do Estado.
Procurada pela BBC Brasil, a assessoria do governador de Goiás, Marconi Perillo, disse que não fez solicitação porque considerou a recomendação do Ministério da Justiça um “exagero”. Segundo o governo de GO, as forças policias do Estado são uma das “melhores do país em varreduras” e, portanto, capazes de fazer buscas nos presídios sem auxílio do Exército.
“O governo de Goiás tem uma das melhores polícias do país especializada em varreduras, responsável inclusive por cursos de formação para outras forças de segurança do Brasil”, disse, em nota.
O governo estadual ainda afirmou que considerou a sugestão “desnecessária e banalizadora do papel do Exército” e que as Forças Armadas devem atuar em “momentos intransponíveis de crise, quando os entes federados não têm mais recursos”.
“A sugestão foi um exagero do senso comum e não seria endossada por nenhum especialista em segurança pública”, diz a nota.
Em 2017, a pedido de governadores, o Exército fez varreduras em penitenciárias de seis estados – Rio Grande do Norte, Roraima, Amazonas, Acre, Mato Grosso do Sul e Rondônia.
Armas encontradas
Após a rebelião que deixou nove mortos na Colônia Agroindustrial, em Aparecida de Goiânia, a polícia encontrou três armas de fogo enterradas exatamente na ala do regime semiaberto do presídio, onde o conflito teve início. Mas, aparentemente, foram usadas principalmente armas brancas durante a rebelião. Segundo a Polícia Militar, alguns presos foram degolados e tiveram os corpos carbonizados.
Segundo o relatório de inspeção obtido pela BBC Brasil, em março de 2017, havia 1.126 presos na penitenciária dividindo um espaço que deveria ser para 468. Não havia colchão para todos os detentos, nem eram oferecidos materiais de higiene pessoal a eles.
“A unidade prisional se avalia como colônia agrícola, industrial ou similares. No entanto, não se trata de estabelecimento agrícola ou industrial. Os presos ficam trancados em pavilhão durante todo o dia, que possui uma quadra e sem trabalho em parceria”, diz o relatório.
“São oferecidas apenas duas marmitas por dia de alimentação e os presos reclamam de comida azeda e de baixa quantidade. Água é racionada e insuficiente”, continua o texto.
Guerra de facções
O cenário no presídio Odenir Guimarães, onde a polícia militar controlou uma rebelião nesta sexta, é ainda pior, conforme o relatório. Lá, o Ministério da Justiça detectou disputa entre facções pelo controle de “áreas de crime” em Goiás.
“A unidade prisional informou que não tem notícia de facções (PCC, CV e outros) atuando na penitenciária, mas os presos informaram que há brigas entre alas, via de regra por espaços de crimes nas cidades”, diz o documento.
Em fevereiro de 2017, uma rebelião no presídio resultou na morte de cinco presos. Na época, foram encontradas armas de fogo.
“No dia 23 de fevereiro de 2017, foi registrada briga entre facções, que resultou na morte de 5 (cinco) presos e 35 (trinta e cinco) feridos. Estariam envolvidos presos das alas A, B, C, 310 e 320”, diz o relatório do órgão do Ministério da Justiça.
A vistoria também apontou que presos não recebiam atendimento médico e alguns sofriam de doenças graves.
Situação grave em todos os presídios de Goiás
Mas a situação de insegurança e ausência de condições mínimas não se restringem aos dois presídios onde houve rebeliões esta semana. A inspeção também apontou irregularidades em outros seis presídios do estado.
O documento aponta que não há, em Goiás, regulamentos que estabeleçam um procedimento padrão a ser adotado pelos presídios administrados pelo estado.
Ou seja, as regras sobre entrada de alimentação, visita de advogados e a entrada de autoridades variam em cada penitenciária. Em alguns presídios, advogados e autoridades não precisam passar por revista pessoal.
O fornecimento pelo estado de material e itens básicos de higiene também varia em cada penitenciária. Mas, no geral, faltam colchões e materiais de higiene em todos os presídios de Goiás, segundo o relatório de inspeção.
“O Estado de Goiás não presta assistência material mínima às pessoas privadas de liberdade” (Foto: Ministério da Justiça)
“O Estado de Goiás não presta assistência material mínima às pessoas privadas de liberdade. Não fornece colchão, nem uniforme, nem calçados, nem roupa de camas, nem toalhas, nenhum artigo de higiene pessoal, nenhum artigo de limpeza, não fornece absorvente para as mulheres e tampouco fraldas”, diz o documento, assinado pelos conselheiros Alessa Pagan Veiga e Aldovandro Fragoso Modesto Chaves.
“A falta de padronização reverbera também na assistência material. No núcleo de custódia, por exemplo, é fornecido preservativo. Na penitenciária feminina, não.”
Os conselheiros também verificaram que “não existe água potável em nenhuma das unidades prisionais inspecionadas”. O número de refeições oferecidas aos presos é considerado baixo, pelo conselho – entre duas e três marmitas diárias.
E, em nenhuma unidade prisional, há programas de combate a incêndios, conforme o relatório. Na rebelião ocorrida na Colônia Agroindustrial, os corpos dos presos mortos foram carbonizados pelos detentos, o que evidencia o risco potencial de fogo na unidade prisional.
Empurra-empurra de resposponsabilidades
Nesta sexta, o governador de Goiás, Marconi Perillo, e os governadores do Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Rondônia e Maranhão divulgaram um manifesto no qual cobram recursos e “providências urgentes por parte do governo federal” para aumentar a segurança nos presídios.
À BBC Brasil, o ministro da Justiça, Torquato Jardim disse, na última quarta-feira, que o “desleixo” de governadores na gestão dos presídios “beira o crime contra a humanidade”, e destacou que eles só usaram 4% da verba de 2017 de R$ 1,2 bilhão repassada pelo governo federal para a compra de materiais e construção de novas unidades.
Ele também afirmou que Goiás “não aplicou como devia” os R$ 44,7 milhões do Fundo Penitenciário Nacional transferidos ao Estado no ano passado.
Marconi Perillo rebateu o ministro dizendo que o valor disponibilizado pelo governo federal- de R$ 44,7 milhões para cada estado- é pequeno quando comparado com os investimentos feitos com dinheiro dos cofres de Goiás no sistema penitenciário.