Nada mais brasileiro que o fura-fila da vacina

Eu nunca tive dúvidas que a distribuição precária e insuficiente das vacinas contra a covid-19 seria eivada de corrupção no Brasil. E que o espírito corporativo de várias categorias tentaria encontrar brechas para se colocar como prioridade na fila de vacinação. Somos o que somos enquanto povo.

Observe que coloquei o verbo ser na primeira pessoal do plural: somos. Sim, todos nós temos que nos responsabilizarmos nessa lástima que é o Brasil. Pois quando falamos que “o brasileiro é assim” dá a impressão que brasileiro é somente o outro. Não. O brasileiro sou eu, é você. Meu pai, sua mãe, sua tia. O filho, o neto e o irmão. O primo do bisneto da sobrinha. E até o cachorrinho de estimação. Salve, Porcas Borboletas.

Se somos esse povo lamentável, tem um pouquinho da assinatura de todos nós. E o políticos? Bem, eles também vieram do povo brasileiro. E foram colocados nos cargos que ocupam pelo povo brasileiro. Não temos políticos suecos e nem foram votados por italianos. Somos o que somos.

Sérgio Buarque de Holanda já havia teorizado esse comportamento no clássico Raízes do Brasil. Em 1936, autor definiu esse descaso pelo coletivo como “homem cordial”, aquele sobrepõe o interesse privado perante o público. O fura-fila da vacina é o tal do “homem cordial”.

Agora vemos políticos se vacinando ou aplicando doses em parentes quando não estão na lista de prioridades. Vemos categorias como veterinários, promotores, funcionários do STF, jornalistas, caminhoneiros e tantas outras tentando se colocar na frente dos outros. Todos homens cordiais, é claro.

Esses fura-filas têm que responder judicialmente. Mas é difícil encontrar tipo penal para enquadrá-los. Os servidores públicos ainda podem ser punidos por prevaricação. Mas, para quem não é, não há muita alternativa.

Só sairemos dessa lama moral quando ser um fura-fila causar vergonha. Quando as categorias não se acharem que são mais importantes que outras. Todos iguais e nenhum mais igual que o outro. Quando tivermos punição severa para esse comportamento lamentável.

Um trabalho para gerações. Mas que passou da hora de começarmos.