PMs relembram Operação Césio após 33 anos do acidente radiológico de Goiânia
Se por um lado o mês de setembro tem a simpatia dos goianos pela chegada…
Se por um lado o mês de setembro tem a simpatia dos goianos pela chegada da primavera e feriado de Independência, para algumas pessoas tornou-se, em 1987, fragmento da memória de uma tragédia. Isso porque no dia 13 de setembro daquele ano, Goiânia experimentou o maior acidente radiológico do mundo, ocasionado pela abertura irremediada de uma cápsula de chumbo que guardava o elemento Césio-137. Em 2020, o episódio que mudou a vida de milhares de pessoas completa 33 anos, ciclo que traz de volta lembranças de dor e angústia na mente daqueles atingidos pela radiação do “Azul da Prússia“. Conheça, a seguir, algumas dessas histórias.
Tudo começou quando Devair Ferreira, proprietário de um ferro-velho em Goiânia, adquiriu um aparelho de radioterapia de dois catadores de material reciclável que haviam encontrado a uma máquina hospitalar abandonada nas antigas instalações do Instituto Goiano de Radioterapia, no Centro da capital. Ao decidir abrir uma cápsula encontrada no interior do aparelho, Devair, sem querer, expôs um isótopo radioativo usado em tratamentos contra tipos de câncer. Ali tinha início uma das piores tragédias já vividas no Brasil e que marcou para sempre a vida dos envolvidos.
Embora à época o elemento césio-137 fosse um “ilustre desconhecido” da população, informações sobre os perigos que a radiação oferecia ganhavam as ruas. A lentidão ocorreu porque apesar de a caixa ter sido aberta no dia 13, o fato só chegou ao conhecimento de especialistas no assunto em 29 de setembro de 1987, quando a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) recebeu a notificação do acidente.
Até lá, nesses 15 dias de cápsula aberta, policiais (PMs) e bombeiros militares, completamente alheios à situação, haviam sido designados para atuar na criada Operação Césio e já trabalhavam no bloqueio dos locais atingidos e transporte de material contaminado. Hoje, 33 anos depois, esses mesmos policiais, os que sobreviveram à tragédia, padecem com sequelas da radiação e os efeitos do descaso do poder público.
“Fomos cobaias”, afirma tenente
Hoje, com 54 anos, o tenente da reserva Valdir de Oliveira tinha apenas 22 anos quando foi convocado para atuar na Operação Césio. O militar integrava a chamada ‘cavalaria’ que, de acordo com o militar, era formada por três quartéis localizados em Goiânia.
“A cavalaria foi a primeira tropa a ser designada para se deslocar para o Setor Aeroporto e fazer o isolamento. Mas eles viram que a extensão do problema era muito grande e chamaram apoio da academia e do 7º batalhão. Várias companhias trabalharam lá prestando serviço no césio-137”, recorda.
O militar da reserva conta que as equipes policiais precisaram bloquear uma grande extensão da região Central de Goiânia devido aos vestígios de césio espalhados por Devair e familiares. As residências da região foram todas esvaziadas. De acordo com dados do Centro de Assistência dos Radioacidentados (Cara), por causa da contaminação, 41 casas foram evacuadas e sete, demolidas. “Os moradores tiveram que sair com a roupa do corpo. Até os passarinhos foram sacrificados”, revela Valdir.
O tenente destaca que os policiais integrantes na operação não recebiam qualquer informação, treinamento ou equipamento de proteção. Enquanto funcionários da Cnen trajavam roupas especiais e máscaras de proteção, a única cobertura dos militares era a farda. A sensação, conforme explica Valdir, era a de desamparo.
“A roupa que a gente usava era só o fardamento. A gente não tinha nenhum equipamento. O Exército chegou lá, ficou por 40 minutos e o comandante deles os retirou imediatamente. Ficou só a PM mesmo […].Eu me senti uma cobaia. Fomos jogados lá”, desabafa.
Problemas de saúde
Na época, o Estádio Olímpico Pedro Ludovico Teixeira, no Centro da capital, serviu de campo de monitoramento e descontaminação. Segundo o Cara, lá, 112.800 pessoas foram monitoradas e 249 pessoas manifestaram contaminação no corpo; 120 outras foram detectadas com contaminação externa, nas roupas e sapatos.
A noção da gravidade da situação, segundo o tenente, só começou a recair sobre os policiais quando os funcionários da Cnen começaram a “se abrir” com os militares. Até então, o contato dos atuantes na operação com ambientes e materiais contaminados era contínuo. “Eu andei dentro da casa onde as pessoas estavam isoladas. Colega meu não quis não, ficou com medo. Eu entrei. A gente não sabia do risco”, relembra o tenente.
Valdir, que atuou na operação até 1988, teve a vida transformada após o acidente. Em 1989, o militar, à época com 25 anos, conta que teve uma paralisia fácial cuja causa não era diagnosticada por nenhum médico. Era a radiação agindo sobre seu corpo. O tenente recorda que não obteve nenhum amparo ou auxílio do Estado, sendo obrigado e vender sua moto para custear o tratamento.
O militar afirma que também teve que ficar quase um ano sem usar bermuda. “Saiu uma coisa nas minhas pernas, parecia lepra”, recorda. O problema permaneceu por meses até desaparecer.
Hoje, o tenente revela que recebe duas pensões, estadual e federal, de um salário mínimo cada, em razão de seu contato com o césio-137. Contudo, para Valdir, os danos causados em seu corpo e sua mente não poderão nunca ser reparados. “Se você olhar bem a realidade mesmo, nós fomos enganados. Colocaram a gente como bode expiatório lá”, finaliza.
Exposto por 10 anos
O sargento Rubens José de Almeida, hoje com 56 anos, era um jovem soldado quando foi chamado para atuar na Operação Césio. O militar diz que se lembra de lhe terem informado que se tratava de um acidente, mas que não sabiam muita coisa a respeito.
Rubens também atuou no bloqueio e isolamento das regiões de Goiânia afetadas pelo Césio, mas foi no depósito de rejeitos de Abadia de Goiânia que ele viveu 10 anos de angústia e preocupação.
Em 25 de outubro de 1987, sob protestos dos moradores da região, um depósito construído provisoriamente no município de Abadia de Goiás começou a receber os rejeitos do césio-137, mas a construção do depósito definitivo teve início apenas em 1991. Segundo dados do Centro de Assistência de Radioacidentados (Cara), 6 mil toneladas de rejeitos foram transportadas para o local em 4,2 mil tambores comuns de 200 litros; 1,3 mil caixas metálicas; 8 recipientes de concreto e 10 contêineres marítimos.
Rubens conta que, ao longo de uma década, sua função era transportar pessoas entre os postos de serviço localizados no depósito. “Eu era o motorista do micro-ônibus que pegava o pessoal que estava saindo e levava o pessoal que estava entrando”, relembra.
Assim como o tenente Valdir e todos os outros policiais que trabalharam em ações relativas ao césio-137, o perigo do isótopo só foi informado ao sargento Rubens muito tempo depois. O militar revela que, por conta da operação, sua carreira e pretensões na vida militar foram completamente frustradas.
“Eu era soldado novo, na época, depois virei sargento. Eles interromperam minha carreira militar. Hoje eu sou 1º sargento e agora que eles vão me dar uma promoção de subtenente. Eu tenho escala de serviço pra confirmar. Eu fui muito prejudicado, porque hoje era para eu ser um capitão ou major da PM”, lamenta.
“Vida destruída”
Após o acidente com o césio-137, Rubens teve três filhos: duas meninas, em 1987 e 1994, e um menino, em 1989. Hoje com 31 anos, o filho de Valdir nasceu com deficiência psicomotora, o que o impõe barreiras ao seu ritmo de aprendizado e desenvolvimento cognitivo. “Entrei na Justiça para conseguir uma pensão para ele, porque isso foi efeito do césio, mas até hoje nem chamaram para a perícia”, conta o sargento.
Rubens trabalhou ativamente na PM por 16 anos. Em 2000, foi submetido à junta médica e reformado por conta de problemas como depressão e ansiedade. O militar considera que a vida nunca mais foi a mesma após o acidente. “O que aconteceu com o Césio-137 acabou com a minha vida, minha carreira militar. Me causou sequelas e sou discriminado até hoje”, expõe.
Questionado sobre sua maior lembrança da experiência, Rubens responde, após alguma hesitação: “meus amigos que estavam comigo na época. A maioria já morreu, e os que estão vivos estão em fase terminal de câncer. Eu estou sobrevivendo”.