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Sheik palestino que lidera mesquita em Goiânia fala de motivações da guerra entre Israel e Hamas

Em meio a intensificação dos conflitos na Faixa de Gaza, Kamal tenta converter goianos em torno de sua crença

Nasci na Palestina no dia 8 de janeiro de 1943. Cinco anos antes da decretação do estado de Israel”. Do nascimento de Kamal Hamideh passaram-se 80 anos. São 63 deles no Brasil e outros 55 dedicados ao islã, crença religiosa que reúne quase 2 bilhões de fiéis em todo o mundo, a maior parte nos continentes africano e asiático. “No Brasil está crescendo. Em um ano, contamos 183 homens e mulheres convertidos aqui na região. Paramos de contar, já deve passar dos 300”.

Jejum, orações regulares acompanhadas da ablução – processo de higienização para o diálogo com a divindade -, a crença num único Deus e os ensinamentos do Alcorão são a base do Islã. Kamal coordena as mesquitas de Nerópolis, cidade da região metropolitana onde tem morada, e de Goiânia. Na capital, ele comanda as orações que costumam se iniciar às 13h, sempre às quintas, sextas, sábados e domingos.

A Palestina “que não existe mais”

Kamal nasceu em uma Palestina que não existe mais. Seja de forma geográfica gradativamente perdendo sua extensão e até mesmo em sua lembrança. A memória também é fraca. “Não lembro dos meus primeiros cinco anos de vida, nem da Guerra de 1948. E eu não lembro nem de 1967”, fazendo referência aos dois conflitos que marcaram a divisão no território.

A Primeira Guerra Árabe-Israelense ocorreu entre 1947 e 1948, logo após a criação do Estado de Israel pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa fato histórico deu o tom do que seria a relação entre as nações árabes e a nação recém-criada. Era a escalada de um debate que já existia antes mas que ganhou corpo com a formalização. E com isso, violência. Muita violência.

Kamal veio para o Brasil em 1960, sete anos antes da Guerra dos Seis Dias, outro divisor de águas nas terras árabes. A viagem por navio durou 23 dias. “Já tinha avião, mas viemos por meio do mar. Quase fui deportado quando cheguei aqui”, relembra. Jovem, com apenas 17 anos, por pouco não retornou ao país de origem. “Eles queriam me deportar pelo fato de eu ser menor de idade. Deram um ‘jeitinho brasileiro’ e eu acabei entrando. De lá para cá já se passaram 63 anos”, relembra.

A escolha pelo Centro-Oeste é explicada no contexto da construção da capital. Muitos palestinos migravam para o Brasil para trabalhar nas obras em Brasília e Goiânia acabou se tornando um bom ponto de trabalho para os árabes que buscavam melhores condições de vida. Com o pai de Kamal já no Brasil, ficou fácil para ele e seu irmão estabelecerem morada.

Sheik Kamal: metade arábe, metade brasileiro

Já adaptado ao solo brasileiro, Kamal retornou à Palestina em 1972. Ainda não era fazia as orações com frequência quando entrou numa Mesquita e viu crianças orando. A cena tocou o coração do homem adulto já com seus quase 30 anos de idade. “Quando vi aquilo falei: se tem criança pequena desse jeito rezando porque eu não vou rezar? Quando voltei ao Brasil, em Anápolis, pedi informação sobre como se fazia”, destacou.

Foi justamente em Goiás então que começou a coordenar os trabalhos islâmicos. “Comecei a rezar de lá para cá em uma Mesquita de Anápolis. Tomei conta dela por quinze anos. Dez anos como líder religioso e cinco anos como muadhan [aquele que profere as orações publicamente nas mesquitas]”, destaca.

Tanta experiência como líder religioso lhe rendeu o título de Sheik. “Sheik já tem muita idade, sheik já comandou mesquita, sheik é lider da comunidade mulçumana”, explica.

No Brasil, também se casou por duas vezes. A primeira esposa faleceu em decorrência de um câncer. O matrimônio lhe rendeu 4 filhos. “Tenho um casal de filhos que mora na Palestina e outros dois filhos que moram aqui no Brasil. Meu coração é dividido ao meio: sou metade árabe e metade brasileiro”, comenta com um leve sorriso. Atualmente, vive com a segunda esposa numa relação que já tem seus 12 anos.

“Você sabe o que é um terrorista?”

Com uma barba grisalha que impõe respeito e escancara sabedoria, Kamal sente-se em casa no Brasil e em Goiás. Por aqui teve pouquíssimas experiências xenofóbicas. “Allah protege”, destaca. Na realidade, o sheik se surpreende com a boa receptividade do povo brasileiro.

“A receptividade do brasileiro é a mesma coisa do árabe. Quando um brasileiro vai atrás de uma mesquita ele já vem bem informado. Ele sabe que se deparou com a verdade. Muitos homens e mulheres se converteram”, salienta. “Goiânia é um berço acolhedor não só para árabes. Para lidar com estrangeiros, não há comparação entre os goianos”, comemora.

Para ele, a desinformação em torno do povo árabe deve ser combatida com diálogo e conversa. Ele lembra quando, em Nerópolis, um grupo de meninos o chamou jocosamente de terrorista. “Após 55 anos morando em Nerópolis me provocaram dessa forma”, relembrou.

“Fui atrás deles e os encontrei na Igreja. Eram evangélicos. Perguntei alto: “quem me chamou de terrorista?”. Chamei eles. “Vocês sabem o que é terrorista?”, “Sabe o que é Israel?”, “Sabe o que é Hamas?”, “Sabe o que é essa Guerra?”, questionou o grupo de garotos.

“Eles não sabiam responder nenhuma das perguntas. Educadamente, eu comecei a explicar do começo ao fim. Eles saíram tão satisfeitos e se tornaram amigos da gente. Expliquei a verdade, o que é Jerusalém, o que é a Palestina, o que são mulçumanos… Viraram amigos da gente!”, comemorou.

Tudo é política

Assim como no judaísmo e no cristianismo, o islã tem a crença em Deus como principal motivador da salvação e da ida ao paraíso. Essa convergência faz com que essa tríade possa andar de mãos dadas.

“Tem que seguir os mandamentos de Deus, seguir o alcorão, fazer caridade, ajudar o próximo, sendo mulçumano ou não. Tratar bem os pais e os vizinhos, qual for a raça, a obrigação do mulçumano é fazer bem ao próximo”, pontua algumas questões básicas.

Por isso, nada impede que um mulçumano e um cristão tenham o mesmo destino. “Desde que acredite adore um Deus único. Muitos cristãos vão para o paraíso. Infelizmente, um ateu não pode ir. Quem te criou? Quem é o nosso criador? Deus nos criou para adorá-lo”, salienta.

Qual a motivação de tamanho conflito? “O Hamas sempre existiu. Quem formou o Hamas foi o próprio judeu e Israel. Era segurança para eles. Até pouco tempo atrás eram amigos. Eles conversavam e se entendiam. Agora são inimigos. Por conta da política.”, salientou.

Questionado sobre sua tese para a divisão, Kamal é reticente. “É por conta da política. Eu não vou saber te explicar a política dessa relação. Estamos na casa de Deus para agradecer, rezar, suplicar, ensinar, tomar conhecimento e transmitir paz”, colocando um ponto final nesta questão.

“O significado de Israel”

Mas há um ponto de divergência entre Kamal e o chamado Estado de Israel. “Temos irmãos crentes que não entendem o significado de Israel. O nome de Israel não é esse que está aí hoje. É Jacó e os filhos dele. Quando você lê a Bíblia e se fala dos filhos de Jacó, pode ter certeza que é Jacó e as tribos. Para os crentes, Israel é essa nação que tá aí”, salienta.

A política, no entanto, coloca entraves para o fim do conflito que se arrasta há quase oitenta anos. Kamal sofre pelo seu povo. De Goiânia, ora por aqueles que estão diante dos perigos. No islã, a morte não é um problema. A crença numa vida após a morte em um paraíso pacífico minimiza as dores.

Em Goiás, fica feliz em ver a comunidade muçulmana crescendo entre brasileiros misturados com imigrantes de vários lugares do mundo. “A maioria das pessoas que se reúnem aqui são moradores das periferias. A comunidade começou com senegaleses 4 anos atrás. Temos muito senegaleses entre nós. Recentemente, começamos a receber muitas pessoas do Afeganistão. Chegaram aproximadamente 30 famílias. Todos mulçumanos. A metade dos frequentadores dessa mesquita são afegãos”, explica. A Palestina é logo ali.