VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: DOENÇA SOCIAL QUE MATA
No Dia Internacional da Mulher, o aumento do número de crimes por motivo de gênero escancara a realidade do país, que nem mesmo diante do endurecimento das leis é capaz de conter ações de agressores, principalmente, contra suas próprias companheiras
“Ele era um príncipe, faltava adivinhar o que eu queria. Depois foi mudando o comportamento, foi ficando agressivo.” Este é o relato de uma mulher vítima de violência doméstica, mas que poderia ser de tantas outras agredidas diariamente, seja de forma física, psicológica, patrimonial, sexual ou moral. E agora, nestes 8 de março, Dia Internacional da Mulher, será que há motivos para comemorar?
No Brasil, cerca de quatro mulheres são assassinadas por dia. Só no ano de 2019 foram registradas 1.310 mortes em todos os estados do país por violência doméstica ou condição de gênero. E o fato mais alarmante é que, na maioria dos casos, os criminosos são companheiros ou ex-companheiros das vítimas.
Em Goiás, dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-GO) revelaram que no último ano, 40 mulheres foram vítimas de feminicídio, 781 foram estupradas, 15.599 sofreram algum tipo de ameaça, e 10.497 apanharam. Isso mesmo, no Estado, a cada hora, uma mulher é vítima de violência física. E o que explicaria esse índice de violência tão alto contra o gênero?
De acordo com a delegada Paula Meotti, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher em Goiânia, esse quadro de violência tem um fundo cultural “muito forte”, em que os “homens sentem-se no direito de dominar as mulheres”: “Não é possível falar sobre violência doméstica sem analisar esse contexto em que estamos inseridos na sociedade”. Para a delegada, o caminho é a difusão do conhecimento: “a mulher precisa identificar que está em um relacionamento tóxico, abusivo, e perceber que não precisa fica nele”.
“COMO MULHER E DELEGADA, EU ACHO QUE 40 MULHERES QUE MORRERAM EM RAZÃO DO SEXO FEMININO É, INDISCUTIVELMENTE, PARA MIM, UM NÚMERO MUITO ALTO”.
Paula Meotti – delegada titular da Deam
Foi assim que a Ana* saiu de um relacionamento de mais de dez anos em que era frequentemente abusada. “No começo ele me tratava muito bem, não só a mim, mas a toda a minha família. Me levava para passear, viajar, era tudo perfeito, depois ele começou a ter comportamentos esquisitos, diferentes”.
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
Ana conta que o primeiro tipo de violência que sofreu foi a psicológica, segundo ela, seu companheiro a fazia pensar que tinha dito coisas que não disse, já outras, que ela realmente falava, o marido negava. Essa situação foi persistindo até o momento em que ele a levou a uma clínica psiquiátrica, onde afirmou que a companheira estava louca e precisava ficar internada. Como, de fato, Ana não sofria de nenhum problema psiquiátrico, voltou para a casa com o agressor.
“Depois disso ele começou a me levar para passeios depois da meia noite em lugares escuros. Quando chegávamos, ele dizia que iria me deixar sozinha, me chamava de demônio, falava que eu era a mulher mais feia do mundo, que minha alma era negra e por isso iria me deixar lá. Ele me agredia de tal forma, que eu tenho até vergonha de falar, na cama ele dizia que eu era uma velha feia, pobre, porca, que nenhum homem iria me querer e eu ia acabar ficando sozinha”.
De acordo com Ana, esse tipo de situação era recorrente e, ao fim de cada episódio, ele mudava de comportamento, pedia desculpas, e ela decidia perdoá-lo. Após um tempo, as agressões verbais sobrepujaram ao ponto de ele começar a espionar a esposa. “Ele colocou um espião no meu telefone, eu nem sabia que existia, e tudo que eu falava com alguém ele sabia. Depois, dizia que eu tinha contado pra ele (sic). Porém, eu sabia que não tinha contado. Mas como ele poderia saber? Por fim eu comecei a acreditar que estava louca”.
“NA FRENTE DA MINHA FAMÍLIA ELE ME TRATAVA COMO RAINHA, E ELES, VENDO AQUILO, TAMBÉM COMEÇARAM A ME TAXAR DE LOUCA”
“O PORTÃO DA MINHA CASA ABRIA E FECHAVA SOZINHO, A CAMPAINHA TOCAVA SEM TER NINGUÉM NA PORTA, A ENERGIA ERA DESLIGADA À NOITE, PEDRAS ERAM ATIRADAS NO MEU QUINTAL… E QUANDO EU CONTAVA, NINGUÉM ACREDITAVA EM MIM”.
A situação foi se agravando, e o companheiro de Ana começou a falar para a família dela que o comportamento da mulher era agressivo: “Ele dizia para minhas irmãs que eu pegava faca para ameaçá-lo, que eu tentava cortar meus pulsos, batia a cabeça, e elas acreditavam porque viam como ele me tratava na frente delas”.
Em seu relato, Ana contou que certo dia sentiu tanto medo que ligou para a filha. Ela, vendo o desespero da mãe, foi até à casa dela para buscá-la. “Eu saí de camisola mesmo, não dormi a noite inteira. De manhã eu decidi buscar algumas roupas e pegar meu carro, estava decidida a não voltar”.
Assim que chegou à casa em que morava com o então marido, Ana tentou sair com o carro, e – para sua surpresa -, a frente do veículo se desmontou toda. Ela foi até uma oficina onde lhe disseram que haviam mexido em toda a estrutura do automóvel. “Pensei em chamar a polícia, mas tinha medo da reação dele, e mais uma vez o perdoei. No fundo, eu tinha esperança de que ele mudasse e ficássemos bem, então voltei pra nossa casa”.
SEM DINHEIRO
Passados alguns dias, Ana começou a sofrer outro tipo de violência, a patrimonial. Nesses casos, o homem usa o dinheiro ou bens materiais da mulher para ter controle sobre ela. “Ele começou a usar meu cartão de crédito para tudo, pegava meu dinheiro e saia por três dias, enquanto eu ficava em casa sem ter nem mesmo o que comer. Quando ele voltava, eu, de novo, tentava conversar, terminar o relacionamento, mas ele me convencia, dizia que estava arrependido e iria mudar”.
Em outra ocasião, Ana conta que o marido decidiu marcar uma viagem, segundo ele, para eles voltarem a relação ao que era antes. Embarcaram de Goiânia para outro estado, assim que chegaram, ele pegou todos os seus documentos, dinheiro, e desapareceu por dias. Ana não tinha como sequer pagar pelo hotel em que estava hospedada. Quando voltou, como de costume, o marido desculpou-se e o ciclo iniciou-se novamente.
ENFORCAMENTO E AMEAÇA
Passada a fase tranquila, eles retornaram ao clima de violência, foi quando aconteceu a primeira agressão física. “Ele me empurrou, me enforcou, e enquanto me agredia dizia que não sujaria suas mãos comigo, eu morreria, mas não seria pelas mãos dele”, desabafou Ana.
Após esse episódio, Ana saiu de casa, trocou de carro e foi morar em outro bairro. Na cabeça dela todo o tormento tinha chegado ao fim. “Pensei que acabariam as brigas, ameaças, a tortura psicológica, mas estava enganada”. Foi a partir desse momento que ela perdeu o sossego, seu então ex-marido passou a persegui-la e amedrontá-la.
“EU PRECISEI PEDIR LICENÇA DO MEU EMPREGO, TINHA MEDO DE SAIR DE CASA ATÉ PARA IR AO SUPERMERCADO, EU ESTAVA SENDO VIGIADA 24 HORAS DO MEU DIA”.
Ana procurou a delegacia de proteção à mulher e conseguiu uma medida protetiva, mesmo assim, o agressor continuou a persegui-la. “Comecei a receber áudios sendo xingada, via carros rondando minha casa, eu não dormia, não comia, não vivia…”
AJUDA
Após começar a receber acompanhamento do programa de proteção da Guarda Civil Metropolitana (GCM), Mulher Mais Segura, Ana mudou novamente de casa, recebeu acompanhamento psicológico e conseguiu retornar ao trabalho. Ela conta que ainda sente medo, mas agora está aliviada: “Eu consegui me livrar desse relacionamento abusivo, hoje eu tenho minha vida de volta, consigo sorrir novamente”.
“EU CONSEGUI ME LIVRAR DESSE RELACIONAMENTO ABUSIVO, HOJE EU TENHO MINHA VIDA DE VOLTA, CONSIGO SORRIR NOVAMENTE”.
Ana é uma exceção em meio às tristes estatísticas de violência contra a mulher no país. Apesar de ter sofrido inúmeros abusos, ela denunciou, livrou-se da relação tóxica e do ciclo da violência doméstica do qual era vítima, e não passou a ser mais um número nos casos de feminicídio.
O agressor não pode mais se aproximar de Ana em virtude da medida protetiva expedida pela Justiça. Em caso de descumprimento, a Lei 13.641, de 3 de abril de 2018, que altera a Lei Maria da Penha para tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, prevê detenção de três meses a dois anos.
“ART. 24-A. DESCUMPRIR DECISÃO JUDICIAL QUE DEFERE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA PREVISTAS NESTA LEI: PENA – DETENÇÃO, DE 3 (TRÊS) MESES A 2 (DOIS) ANOS”.
CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A comandante Flávia Modesto, coordenadora do Programa ‘Mulher Mais Segura’, relatou à reportagem que nem todos os casos conseguem ter um final de superação. “Infelizmente, muitas das vezes as mulheres vão levando a situação confiando no arrependimento do agressor e, quando percebem, já não podem mais se livrar. Elas morrem, tem a vida ceifada por uma pessoa em que tinham total confiança, dividiam a vida, os sonhos…”
“Mas felizmente existem aquelas que aceitam nossa ajuda, que conseguem dar a volta por cima, e perceber que não precisam fazer parte dessa triste realidade”, concluiu.