American Gods: não é para os descrentes
Seriado que adapta romance de Neil Gaiman é cheio de acertos, mas não é pra todo mundo
Após oito episódios, está encerrada a primeira temporada de American Gods, adaptação do canal Starz para o romance Deuses Americanos, de Neil Gaiman. O seriado se propõe a ser mais ambicioso do que seu material original e a explorar novos caminhos temáticos e estéticos na televisão. No geral, eles conquistam com sucesso aquilo que propõem, mas ainda falta polimento para que esta se torne uma das melhores séries do momento.
A série fantástica acompanha Shadow Moon (Ricky Whittle), um ex-presidiário que é liberado mais cedo por um motivo sinistro: sua esposa e único ente querido próximo, Laura (Emily Browning), morreu em um acidente de carro horas antes da sua soltura. Sem ter pra onde ir nem saber o que fazer, Shadow, acostumado a fazer bicos e trabalhos braçais, recebe a proposta de atuar como guarda-costas do misterioso Sr. Wednesday (Ian McShane) e acaba aceitando.
O que ele não sabe é que esta escolha simples vai colocá-lo no meio de um turbilhão no qual nenhum mortal deveria estar: uma guerra entre deuses, os velhos e os novos, pela fé da humanidade. Relevante quando foi publicado originalmente nos anos 1990, o romance tem muito a dizer e o seriado também o tem. Embora Gaiman esteja envolvido como produtor executivo, estranhamente, a mão autoral do produtor Bryan Fuller é muito mais perceptível que a do autor britânico, seja no tom ou nas temáticas trabalhadas nesta temporada.
Fuller tem todo um jeitinho muito menos sutil e bem mais visual que Gaiman, sempre adepto de simbolismo e de um pavio mais longo em suas tramas. A combinação do trabalho dos dois é excelente, embora um tanto descompassada em dados momentos.
O bom
O que mais chama a atenção da série é, de cara, o seu visual. American Gods rapidamente se diferencia esteticamente de seus pares e por possuir uma direção de arte impecável (além de ter uma das sequências de abertura mais legais dos últimos anos).
Assim como Legion, a série traça um ritmo e um caminho narrativo mais lisérgico e experimental, cheio de sequências surreais coloridas e vibrantes. Sendo assim, o seriado consegue ser visualmente ainda mais fora da caixinha que o da Fox.
Há, também, o elenco. Embora algumas atuações tenham sim decepcionado, Ian McShane naturalmente rouba a cena como Wednesday. Ele simplesmente sequestra o programa: você se pega achando ruim quando o ator não está em cena apesar de outras boas histórias estarem na tela. Seu personagem é insidiosamente charmoso e carismático e o mesmo vale para a sua atuação.
Em termos de trama, American Gods tem o difícil trabalho de entregar pelo menos parte do enredo central do livro ao mesmo tempo em que cresce e expande sobre ele. Não é nada novo: The Man in the High Castle e The Handmaid’s Tale estão passando pelo mesmo processo de criar uma grande narrativa baseada num romance de algumas centenas de páginas.
De modo geral, o roteiro entrega o que precisa entregar, mastigando algumas das partes mais incompreensíveis para o grande público. Afinal, American Gods possui muitas partes móveis apesar do que uma primeira impressão pode passar e é necessário todo um cuidado para que a audiência não se perca num mar de nomes, mitologias e referências obscuras.
Um ponto surpreendente é o fator religiosidade da série: ela fala sobre deuses e diversas questões sobre o amor, o medo, a morte e a existência são abordadas, mesmo que superficialmente, da mesma forma que diversos dogmas são questionados. Não é nada muito elaborado ou profundo, mas é curioso o bastante para, quem sabe, instigar certos questionamentos nas mentes da audiência.
Fuller pesa a mão em algumas temáticas, mas é interessante ver certos assuntos polêmicos, como relações de gênero, sendo tratadas na série sobre uma perspectiva diferente.
O mau
Apesar de ser um protagonista estoico e caladão, Shadow consegue ficar ainda mais sem graça na atuação pétrea de Ricky Whittle. O ator de The 100 se esforça, mas muitas vezes acaba abaixo do esperado, sendo cômico quando não deve ou sisudo de maneira caricata em dados momentos. Conforme a temporada avança e o medo e confusão do personagem deveriam parecer maiores e à flor da pela, Whittle parece exatamente o que ele é: um ator tentando fazer um cara com os nervos à flor da pele.
Estar em cena a maior parte do tempo com McShane com certeza não ajuda. Shadow pede alguém calado, mas carismático. É impossível não enxergar Dwayne ‘The Rock’ Johnson no papel, ou mesmo Jason Momoa, mas provavelmente ambos os atores ficaram muito velhos – e muito, muito caros – para o papel.
O mesmo vale para o desempenho abaixo da médio de Emily Browning como Laura. A atriz, veterana de listas de grandes atrizes ainda não reconhecidas, teve com American Gods a sua grande chance e se provou, em muitos aspectos, sem sal. O que é uma pena: Laura é uma personagem muito mais interessante e complexa no seriado do que no livro.
Fora as atuações meio mais ou menos de Whitlle e Browning, o maior problema da série seria seu descompasso: o enredo se torna simplesmente embolado às vezes. A sensação é de que a história simplesmente deságua em seu season finale, aos trancos e barrancos, sem exatamente um cordão narrativo visível ligando um fato ao outro, pelo menos não de uma maneira que proporcione uma sensação de progresso mais palpável.
Por fim, não é uma série para todo mundo. Lembra o que eu falei sobre a série trazer alguns questionamentos e provocações interessantes? Bom, estas provocações envolvem religião e algumas pessoas certamente não vão gostar de serem questionadas ou sequer de serem convidadas a refletir sobre certos dogmas. Portanto, se você é uma pessoa muito religiosa, American Gods, mesmo sendo uma obra de fantasia, talvez não seja pra você.
Além de que é um seriado muito gráfica: há palavrões e nudez à rodo além de uma ou outra cena mais violenta.
O veredito
American Gods é facilmente uma das melhores séries do ano, mas ainda precisa de um bom polimento. Sua premissa, personagens e trama central são sólidos, mas erros de execução levam a um roteiro trepidante e à atuações um pouco canastronas que prejudicam o plano geral.
O que esperamos é que o trabalho conjunto de Fuller com Gaiman encontre um ponto certo de equilíbrio para que tenhamos uma segunda temporada mais amarrada e coerente. Toda a temática do seriado é muito boa, mas é importante ter certo controle para não se perder.