Atypical: ninguém é normal
Série da Netflix usa tema delicado para falar de família, amor e aceitação
Decidir fazer uma dramédia envolvendo autismo é uma escolha perigosa. O tema é, na melhor das hipóteses, delicado, mas com Atypical, a Netflix conseguiu entregar uma série boa e leve que ao mesmo tempo consegue ser sólida em seus temas e tramas.
Com uma primeira temporada de apenas oito episódios, o seriado acompanha o jovem Sam, vivido com maestria por Keir Gilchrist. No Ensino Médio e com os hormônios à flor da pele, Sam quer descobrir os prazeres e horrores de um dos mais complicados ritos de passagem da adolescência: encontrar uma namorada.
Mas além de todas as barreiras comuns da idade, Sam tem outro problema: ele é um autista altamente funcional. Por frequentar uma escola comum, ter um emprego e ser bastante independente, Sam enfrenta constantemente as próprias barreiras, mas também os preconceitos impostos por outras pessoas. Alguns não levam a sério o a sua doença, já outros o tratam o tempo inteiro como um louco varrido.
Além disso, todos os membros da sua família estão lidando e passando pelos próprios problemas: sua mãe, Elsa, está entediada e não aguenta mais a vida rotineira de dona de casa além de sentir um vazio profundo após se dedicar por quase duas décadas a criar os filhos e agora vê-los independentes. Seu pai, Doug, tenta compensar com atenção os anos de ausência na vida familiar e sua irmã, Casey, enfrenta todas as barras de uma garota adolescente além de se sentir constantemente em segundo plano já que toda a atenção recai sobre seu irmão.
O bom
Como é possível ver pelo parágrafo acima, Atypical possui muitas peças móveis e tramas paralelas ao redor de Sam. Equilibrar tudo isso é tão difícil quanto não cair em clichês nem ser ofensivo. Vendo a série, meu grande temor era que em algum momento Sam fosse tratado como vítima ou, pior ainda, como culpado pelos problemas alheios.
Seriam pontos de enredo tentadores para roteiristas medíocres, mas a série não cai em nenhuma dessas armadilhas. Mesmo Casey, cuja trama envolve até certo ponto sua insegurança dentro e fora de casa, nunca cai nessa: a personagem ama o irmão e se dedica à ele. Seus sentimentos de segundo lugar ou de inadequação afloram de maneira natural e até mesmo intrusiva. Um roteirista ruim poderia usar isso como arma e transformar a personagem em antagonista.
Outro fator que faz muita diferença é que toda a família é composta por personagens falhos e profundamente envolventes. Parte da trama envolve os problemas sérios no casamento de Doug e Elsa e ambos os personagens possuem falhas grandes. Novamente, um roteiro medíocre podia vilanizar os dois em um segundo, mas Atypical não faz isso.
É muito fácil se envolver e compreender estes personagens porque toda a trama da série quer mostrar uma coisa somente: somos todos humanos. Mais ainda: como dizia Caetano Veloso, olhando de perto, ninguém é normal. Todos os personagens não se encaixam em moldes e padrões de arquétipos empregados não apenas na sociedade, mas repetidos na TV de novo, de novo e de novo.
O ruim
A única coisa que me incomodou nesta primeira temporada é que às vezes o autismo de Sam parece inconsistente. O autismo só parece lhe causar problemas esporadicamente ou senão quando é conveniente para o enredo.
Isso é estranho, pois às vezes o autismo parece mais um recurso de roteiro do que um dos traços do personagem principal. Claro, isso não é um grande problema e a série faz um bom trabalho em mostrar que Sam não é definido por isso (o que é bom), mas às vezes é estranho ou forçado.
Desta forma, é difícil não imaginar que a série funcionaria muito bem apenas com os conflitos que já tem e com Sam sendo apenas inepto socialmente, e não uma pessoa do espectro.
O veredito
A série ganha pontos por ser uma das raras representações positivas na mídia de uma pessoa com doença mental, retratando Sam apenas como mais um adolescente comum, enfrentando seus próprios desafios. Muitas eram as arapucas em um seriado assim, mas os roteiristas evitam as armadilhas e impedem que o seriado caia em clichês e que se torne um dramalhão.
Enfim, Atypical é uma série muito boa e que esconde atrás do seu bom humor e piadas assuntos complexos e importantes de serem debatidos. O seriado faz um excelente trabalho em humanizar todos os seus personagens e a entregar uma mensagem positiva de amor e família apesar das diversas barras enfrentadas pela vida.