Crítica

Cara Gente Branca: crítica dura sem perder o humor

Novo seriado da Netflix tem como principal força um roteiro forte e bem arramado - e ótimas piadas

Estreou no último dia 28 a primeira temporada inteira de Cara Gente Branca, baseada no filme de mesmo nome lançado em 2014 por Justin Simien, que também assina este seriado e dirige alguns dos episódios.

A trama gira ao redor dos estudantes negros em uma faculdade para os super ricos dos EUA e que é predominantemente branca. O enredo se move ao redor dos conflitos raciais que naturalmente eclodem entre os estudantes e, no caso destes 10 episódios, giram ao redor de dois incidentes específicos.

É um tema necessário, mas, da mesma forma, espinhento. Falar sobre racismo é sempre muito complicado e a série sofreu uma chuva de ataques antes mesmo da sua estreia. Mas e no final das contas, ela é boa? Bastante: o seriado possui um equilíbrio raro para tratar do seu tema e possui personagens de carne e osso que cometem erros e possuem paixões e fraquezas.

Além disso, a série tira vantagem da comédia. Ao ser sarcástica e às vezes até boba, ela evita que o tom se torne sinistro demais ou político demais ou denso demais. Dessa forma, ela consegue ser muito engraçada na mesma medida em que é séria, porém mais importante: se mantendo acessível.

O bom

Cara Gente Branca acompanha especialmente quatro alunos negros muito diferentes, cada um com seus próprios problemas além da sombra maior do racismo. Sam (Logan Browning) enfrenta a barra de ser a líder mais vocal contra o racismo na faculdade, apresentando o programa de rádio Cara Gente Branca, que dá nome a série. As coisas só pioram quando ela se envolve com Gabe, um cara branco.

Troy (Brandon P. Bell) é podre de rico e filho do reitor e fica sempre na corda bamba de agradar o pai e de tentar ser um meio termo entre os alunos negros e a maioria branca ao mesmo tempo em que passa por uma crise de identidade. Lionel (DeRon Horton) é seu colega de quarto e está apaixonado por ele, mas ainda não se aceitou como gay e sofre por ser extremamente tímido e inepto socialmente.

Por fim, temos Coco (Antoinette Robertson), que superficialmente parece uma patricinha sem consciência racial, mas que na verdade conquistou tudo na vida à duras penas, vinda da periferia de Chicago, o que a deixou embotada para os valores da luta.

Sam apresenta Cara Gente Branca

Enfim, os personagens são incríveis e todos possuem diversas camadas. Nenhum deles está montados no cavalo branco do Napoleão: eles possuem defeitos, problemas, cometem uma série de erros. Eles são humanos falhos e não heróis, o que derruba imediatamente a dicotomia de que é uma série “nós contra eles” ou que pinta os negros como “melhores do que nós”. Eles são totalmente humanizados.

Além do ótimo elenco e seus personagens, a outra força de Cara Gente Branca está em seu roteiro. A série é muito bem escrita e possui piadas excelentes e bem posicionadas que não deixam o seriado descarrilhar para um dramalhão nem para um manifesto.

Ao mesmo tempo, as piadas sabem se comportar e quando surgir, não minimizando o discurso político. Isto evita que a série acabe passando por superficial. No final das contas, o resultado é uma história muito boa e com um discurso forte que acaba mastigado para ser processado com facilidade por quem assiste.

Por fim, Cara Gente Branca passa com facilidade nos testes F e Bechdel, possuindo duas mulheres bem construídas entre seus protagonistas. Vale destacar também o tamanho dos episódios que optaram pelo formato de 20 e 30 minutos. Isto possibilita com que se assista a série inteira em uma sentada com facilidade, ao contrário da rasa e interminável Girlboss.

O ruim

A série, na real, não possui defeitos, apenas questões que podem ser melhoradas. Acredito que isso se deu pelo cuidado com que foi feita, já que trata de um tema polarizador.

Eu trabalharia melhor dois pontos: o drama interior entre os personagens é muito bom e bastante envolvente, mas às vezes parece consumir à série em alguns momentos. Em um dado momento, você está mais preocupado com um certo triângulo amoroso do que com um problema muito maior que se apresenta na trama.

Troy e seu pai, tentando agradar gregos e troianos

O outro ponto é que a série se chama Cara Gente Branca, mas toda esta temporada foi focada nos alunos negros. Seria muito interessante ver um pouco mais das outras minorias da faculdade, como estudantes asiáticos, latinos, árabes e indianos, por exemplo.

Há até uma piada com isso: há apenas uma personagem asiática na série e um dos alunos negros é racista com ela sem querer quando se conhecem. Seria muito bacana ver mais disso, mais destas outras pessoas de cor.

Não que não esteja bom como foi e não tenha feito sentido: a primeira temporada trabalha criticando um certo discurso de violência que está particularmente associado aos negros nos EUA. Ao trabalhar com outras minorias, a série teria que trabalhar os problemas específicos que elas sofrem, como os mexicanos serem associados ao tráfico de drogas e ao subemprego ou sobre os árabes serem relacionados ao terrorismo.

O veredito

Cara Gente Branca é uma série excelente que consegue trabalhar com muito jeitinho um dos temas mais atuais e mais problemáticos da nossa geração.

A série possui como principal mérito um tom equilibrado, que não se torna político demais nem superficial, além de ser bastante acessível para quem nunca leu ou assistiu nada sobre conflito racial nos EUA.

Sua outra força está em ótimos personagens e um roteiro bem escrito que sabe tirar vantagem da comédia para encontrar esse tom perfeito. Se você ainda não assistiu Cara Gente Branca, devia muito dar uma chance.