Crítica: Entre polêmicas e elogios, ‘Coringa’ é muito mais que um filme do vilão
“É impressão minha ou o mundo está cada vez mais louco?”. A frase, dita por…
“É impressão minha ou o mundo está cada vez mais louco?”. A frase, dita por Arthur Fleck, o Coringa, resume bem o filme que está em cartaz nos cinemas. A produção tem conseguido o feito de ser aclamada pelo público e crítica, ao mesmo tempo em que surgem polêmicas se o longa pode ou não incitar a violência no público. Abordando bullying, transtornos psicológicos, falta de oportunidades e afeto, a história se sobressai e fala mais sobre o homem que sobre o vilão.
Você assiste ao filme com a sensação de que ali nasceu um novo clássico, que será discutido por muito tempo.
Para apreciar Coringa, o espectador não precisa ser fã de Batman ou de filmes de super-heróis; muito menos ter assistido algo que envolva o vilão. Inclusive, vai se decepcionar quem for ao cinema esperando grandes cenas de ação, correria, explosões e humor. A produção é um drama sobre derrota, humilhação e insanidade.
Coringa muitas vezes parece um estudo de personalidade quase documental, que tem como missão investigar o que transforma um homem menosprezado em alguém perigoso.
Arthur Fleck trabalha em uma agência de palhaços de aluguel, mas é tido como um dos menos talentosos. Ele sonha em ter uma carreira como comediante de stand-up. No caminho, entretanto, está a sociedade que o corrompe: a violência, o capitalismo, a elite, a política e até a falta de empatia por parte de estranhos ou mentiras de colegas de trabalho.
O filme aborda o sistema dominante, responsável por tornar o mundo cada vez mais fora de controle. Em certo momento, Fleck é ridicularizado pela única pessoa que lhe trazia certo tipo de alegria, tocando no ponto do poder da mídia e o que cada um considera humor ou não. Temos também Thomas Wayne, representando tão bem um tipo de político que qualquer um conhece atualmente. Fato que levou o assessor do presidente Jair Bolsonaro (PSL), a declarar que o filme demonstra “o que o ressentimento esquerdista pode fazer com uma mente perturbada” e “um retrato do mundo sem Deus”.
A violência de Coringa
A imprensa internacional tem levantado o debate se a obra pode realmente influenciar as pessoas a cometer crimes de ódio e massacres. O cinema de Aurora, no Colorado, se negou a exibir a produção. Em 2012, durante a exibição de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o local foi alvo de um ataque que deixou 12 mortos e 70 feridos. Na semana de estreia de Coringa, a polícia de Nova York colocou policiais à paisana em salas de cinema por toda a cidade.
Por sua vez, a Warner Bros. emitiu uma nota, afirmando que “acredita que uma das funções de contar histórias é provocar conversas difíceis sobre questões complexas” e que “nem o personagem, nem o filme são um apoio à violência no mundo”. O diretor do longa, Todd Phillips, disse que a produção “trata de traumas de infância e falta de amor e compaixão no mundo”. Ele acrescenta “a arte às vezes é feita para ser complicada. Se você quer arte descomplicada, você pode ter aulas de caligrafia”.
Já Joaquin Phoenix, intérprete do Coringa, disse que “as pessoas interpretam mal letras de músicas e passagens de livros, então é óbvio que não é responsabilidade do cineasta ensinar moralidade ou a diferença de certo e errado“.
Tais polêmicas ainda podem render muitas discussões, principalmente porque, ao assistir o filme, em momento algum odiamos o personagem. O sentimento que fica é de empatia. Seria esse motivo para preocupação?
Mais que um filme de super-herói
Coringa foi exibido pela primeira vez no Festival de Veneza, onde a produção levou o Leão de Ouro, prêmio máximo do festival, e foi aplaudido durante oito minutos. Lento para uns e preciso para outros, no final das 2h de duração, a vontade que dá é que tivesse pelo menos mais 2h.
A obra é impecável em todos os aspectos de produção. Nada está ali por acaso. Até os sacos de lixo espalhados pelo cenário têm um propósito. O design de produção é incrível, com uma Gotham City totalmente realista, suja, quase transmitindo seus cheiros pela tela.
Joaquin Phoenix impressiona por sua entrega na interpretação do protagonista, causando certo desconforto e repulsa na mesma medida, que causa empatia. Conhecido por se entregar demais ao trabalho, o ator emagreceu 23 quilos em quatro meses para o papel. Aproveitando disso, a expressão corporal excepcional do ator é explorada ao máximo. Ao mesmo tempo que sua boca está sorrindo doentiamente, os olhos transmitem tristeza em cenas poderosas onde o não dito, diz muito mais do que o dito.
Além da quase certa indicação de Joaquin Phonix ao Oscar de Melhor Ator, a fotografia também deve ser reconhecida. Mesmo o mais desavisado irá reparar na beleza do filme, cujas cenas facilmente renderiam um ótimo wallpaper. É perceptível o uso de muito verde, cor que remete à loucura.
A fotografia, aliada à excelente trilha-sonora que revisita clássicos antigos, dão o tom sombrio à obra. Até a iluminação, geralmente passada despercebida na maioria das produções, aqui tem presença constante na elaboração de cada cena.
A expectativa é de que Coringa abra caminho para que novas adaptações de super-heróis e vilões ganhem filmes mais sombrios e dramáticos, apostando em questões sociais e não apenas apelando apenas para o público juvenil.
Caso isso aconteça, ótimo. Entretanto, caso Coringa seja apenas uma exceção, temos o melhor filme adaptado de quadrinhos da história do cinema.
Como diz a música Smile, de Chales Chaplin, “sorria embora seu coração esteja doendo”.