Literatura

Devaneios biográficos de Júpiter Maçã

Músico lisérgico ganhou a biografia 'A Odisseia'

Num amanhecer em julho de 2014, Júpiter Maçã, estirado no sofá, observava uma moça dançando só de calcinha, se esgueirando entre cortinas e escombros de uma balada paulistana. “Eu quero que a minha biografia comece com este momento, esta cena”, disse ele a seu biógrafo, que estava sentado ao lado. O livro sobre a vida, os excessos e os delírios do cantor, compositor e cineasta, que será lançado nesta sábado, 22, em São Paulo, começa de um jeito diferente, porém mantém o lirismo e a pegada rocker daquele momento.

A Odisseia – Memórias e Devaneios de Júpiter Apple (Azougue Editorial), em coautoria com o jornalista, escritor e músico Juli Manzi, tem início justamente no nascimento de Flávio Basso, em 1968, em Porto Alegre, e termina na morte de Júpiter Maçã Apple, em dezembro do ano passado. Apesar de tão óbvio, o início está longe de ser convencional. Logo de cara, o leitor é apresentado aos delírios ficcionais do narrador-depoente, que relata ter recebido a visita dos Rolling Stones ainda na maternidade. “É um livro de memórias ficcionais, digamos assim. Abrange toda a vida dele e todas as fases da obra, da psicodelia ao final beatnik”, afirma Manzi.

“Aí esses dois cabeludinhos (Jagger e Richards) entraram na maternidade e eu lembro, apesar de ser um bebê recém-nascido, que tinha uns caras com uns terninhos e uns cabelinhos, bem perfumados, usavam um perfume puxado!”, conforme trecho em que o narrador fala de seu nascimento.

Basso adotou o nome Júpiter Maçã no final dos anos 1990, quando alcançou relativo sucesso no rock brasileiro com o disco A Sétima Efervescência (1997), calcado em Pink Floyd e em outras referências do mundo psicodélico e experimental. As Tortas e as Cucas, Um Lugar do Caralho, Eu e Minha Ex e Essência Interior estão entre as faixas desse trabalho, considerado marco do rock gaúcho e um dos melhores discos brasileiros de todos os tempos.

Antes da carreira solo, ele já havia influenciado uma geração de músicos e adolescentes com as bandas TNT e Os Cascavelletes, nos anos 1980. Na primeira década deste século, começou a compor em inglês e acrescentou o Apple ao nome, em trabalhos cada vez mais experimentais. Tornou-se reverenciado por gente importante e pela cena indie nacional e internacional. Jamais ganhou muito dinheiro. Em 2012, caiu da janela de um prédio e ficou dois anos afastado de palcos e estúdios, até ser resgatado, um tanto debilitado, em São Paulo, pelo pessoal da Hard House, uma casa de artistas onde Júpiter passou uns tempos e onde os destinos dele e de Manzi se cruzaram. Morreu faz quase um ano, aos 47 anos, vítima de enfarte. Uma verdadeira odisseia.

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Em seu relato, Júpiter Maçã é direto ao abordar os excessos e excentricidades de sua trajetória, no melhor estilo sexo, drogas e rock’n’roll consagrado pela literatura norte-americana, de Charles Bukowski a Hunter S. Thompson: “Nessa época que participei das filmagens de Kreoko, eu tava tomando cerca de oito Diazepans por dia, cheirando muita coke e bebendo muita cachaça. Não sabia direito o que tava acontecendo ao meu redor”.

Não bastassem essas aventuras vividas em Porto Alegre, São Paulo e no exterior, o livro revela uma prosa fluente, quase psicanalítica. Como neste trecho: “Morar em hotel representa morar dentro do conto dum escritor solitário, que eu não sou, por sinal, tanto é que estou trabalhando com um ghost-writer, mas sou um poeta. Então, morar num hotel é quando um poeta mora dentro da sua própria poesia e, simplesmente, não consegue fugir”.

“Começamos a nos encontrar já no segundo semestre de 2014. Quase sempre deitado em um divã, ele foi contando tudo. Ele tinha um talento literário sensacional”, afirma Manzi.

O livro serve também como espécie de enciclopédia para os amantes da cultura pop: “As gavetas de Keith Richards, John Lennon, Brian Jones e Syd Barrett, essas são as minhas principais influências, e são guitarristas esquisitos. Geralmente, as pessoas falam de Jimmy Page, de Slash, e dizem que querem tocar como Kurt Cobain, com sua distorção e dissonância”.

A Odisseia será também um importante documento sobre a cena musical brasileira da virada do século, especialmente a fase que compreende o surgimento do manguebeat e o declínio das grandes gravadoras, com a falta de grana e de perspectivas dos artistas, os perrengues, de quem não se rendeu ao mercado e aos modismos.

Terminado o relato vigoroso de Júpiter Maçã, Juli Manzi mantém o vigor e a verve com um posfácio no qual relata detalhes do projeto e sua convivência com o artista: “Encerramos ali o conteúdo deste livro. Eu imprimi o que estava pronto até então, mais ou menos a metade da nossa obra literária, e entreguei para ele.

Quando levantei para ir ao banheiro, na manhã seguinte, bem cedo ele estava sentado no sofá com um sorriso malandro estampado no rosto, só me esperando passar, e disse: ‘Acabei de ler o livro’. Ele estava muito feliz e satisfeito”.

“Ele chegou a falar que ia deixar esse livro como legado”, afirma Manzi.

A ODISSEIA

Autores: Júpiter Maçã e Juli Manzi

Editora: Azougue (154 págs., R$ 44)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.