Educação

Dissertação da UFG fala sobre representação da Mulher-Maravilha

Trabalho feito em Catalão comparou as HQs da personagem com a de Miss Fury, primeira heroína dos quadrinhos

Com 75 anos de idade, a Mulher-Maravilha acaba de ganhar a sua primeira versão cinematográfica. Seus principais companheiros de DC Comics, Batman e Superman, possuem cerca de seis filmes cada um. Você pode ou não ter gostado do filme da Princesa Amazona, mas todos concordamos que a personagem carrega consigo uma história e um significado, inclusive porque só agora, décadas depois da série de Lynda Carter, ela chegou aos cinemas.

Tanto que a Mulher-Maravilha foi tema de uma dissertação de mestrado em Estudos da Linguagem feita na Faculdade de Letras da UFG em Catalão. A agora mestre Jaqueline dos Santos Cunha fez sua pesquisa comparando as duas primeiras heroínas das HQs: Miss Fury, conhecida no Brasil como Mulher Pantera, desenhada e criada por uma mulher, Tarpé Mills, e a Mulher-Maravilha, desenhada e criada por um homem, William Marston.

“A ideia na verdade sobre HQ saiu acidentalmente. Originalmente o meu foco foi na primeira super-heroína, que foi a Miss Fury, e achei interessante fazer uma comparação entre as duas e aí que fui ler sobre ela e entender a relação. A Miss Fury é o ponto principal do meu trabalho e que antecede a Mulher-Maravilha, além de ter sido idealizada por uma mulher. Foi isso o que me interessou”, contou Jaqueline.

Miss Fury, a primeira heroína

A personagem criada por Mills é mais antiga que a de Marston, mas é praticamente desconhecida. Nos EUA, sua série de HQs foi cancelada em 1952 e no Brasil ela só deu as caras nos anos 1960, sendo publicada por um curto período de tempo.

Para Jaqueline, a discrepância de popularidade entre as personagens pode ser atribuída a vários fatores, mas ela destaca dois: “Esse desconhecimento pode ser traçado à Miss Fury ter sido publicada em uma editora bem menor. Não havia uma equipe tão grande preocupada na projeção dela quanto teve no caso da Mulher-Maravilha, que tinha uma equipe de ilustradores, Marston, suas mulheres, se dedicando à projeção da personagem. Acredito que estes são os principais pontos”. Ou seja, ter saído na editora do Superman e do Batman foram uma bela ajuda.

Ambiguidade

Segundo Jaqueline, o que mais marcou na sua pesquisa foi ver que ambas as personagens eram, ao mesmo tempo, empoderadas e ícones feministas, e reforços de certas perspectivas machistas, provavelmente por causa do contexto quase inteiramente masculino da indústria em que estavam inseridas. “O que marcou foi a ambiguidade, a contradição, que norteia todas as produções da Miss Fury e da Mulher-Maravilha a todo momento, o que me deixou intrigada. Ao mesmo tempo em que empoderavam a mulher, elas se marcavam como objeto e prazer visual”, destaca.

O orientador de Jaqueline, o professor Alexander Meireles da Silva, acostumado a orientar trabalhos sobre literatura fantástica, achou o trabalho sensacional e chamou a atenção para o contexto da época: “A Mulher-Maravilha foi criada pelo William Marston que sempre teve uma perspectiva feminista e já criou para empoderar as mulheres. Na época, as super-heroínas que existiam eram cópias dos homens: você tinha o Homem-Gavião e tinha a Mulher-Gavião, mais um assistente do herói masculino e muitas vezes eram capturadas pelo vilão e cabia ao herói salvar elas, esse padrão que a gente conhecia bem”.

Arte de Wonder Woman #77 em homenagem à Lynda Carter

O professor também destacou a ambiguidade percebida pela orientanda: “Ela foi criada pra ser empoderada e feminista e levava a mensagem nos anos 1940 de que a mulher não podia depender de homem, mas por estar inserida em uma indústria masculina, muitas vezes ela está em uma posição submissa. Por exemplo, na época da Sociedade da Justiça, ela era a secretária do super-grupo, organizando papelada e atendendo telefone. Era uma batalha de representatividade feminina dentro e fora dos quadrinhos que persiste até hoje”.

Alexander chama a atenção para outro fato interessante que é a ambiguidade do próprio autor, Marston, uma figura bastante excêntrica para a época: “o criador dela era muito complexo que era muito à frente em termos feministas, mas que também tinha uma visão muito particular em relação à sexo e à mulheres. Ele tinha duas mulheres e além disso era adepto ao que hoje associamos ao masoquismo, como o bondage: isso é uma constante nas histórias da Mulher-Maravilha até os anos 1950. É uma coisa de fetiche dele mesmo, o que às vezes podia dar uma impressão de que a mulher gostava dessas coisas, sabe? Mas é uma faceta que só é explorada depois”.

Uma das várias cenas em que Diana aparece amarrada

Jaqueline acredita que a explosão da popularidade da Mulher-Maravilha hoje, além de uma bela campanha de marketing, é resultado de um certo amadurecimento tanto do público quanto dos debates quanto a gênero e diretos da mulher: “Agora é realmente o bum e nesse momento esse alvoroço se justifica pela dinâmica social mesmo, por conta do debate, dos estudos sobre a representação da mulher. Pegar essa Mulher-Maravilha que é um produto cultural com 75 anos de história cheia de polêmica e que dialoga bem com jovens e com o público mais velho é muito importante e dá gás para toda essa conversa”.

Alexander concorda: “Ela é um ícone do feminismo hoje, há uma percepção de que ela é uma heroína diferente, apesar dos seus trajes sumários. A personagem está fazendo 75 anos. O Batman já teve vários filmes, o Superman também. A personagem não tinha chegado às telas, o que já reflete que foi necessário um amadurecimento da sociedade e da cultura em geral para aceitar e tornar um filme desse como bem-sucedido. Agora a sociedade, finalmente, pode debater estes temas com um filme que consegue capturar a essência do personagem, discutindo a questão de gênero de forma sutil”.

Mulher-Maravilha ainda está nos cinemas e se prepara para bater a marca dos US$ 700 milhões arrecadados em bilheteria.