Entenda a ‘CPI do sertanejo’ com Gusttavo Lima gerada pelo ‘tororó’ de Anitta
O cantor Zé Neto, da dupla com Cristiano, mal podia imaginar que, ao criticar uma tatuagem…
O cantor Zé Neto, da dupla com Cristiano, mal podia imaginar que, ao criticar uma tatuagem no ânus de Anitta há algumas semanas, terminaria por levar ao escrutínio público os milhões de reais pagos por prefeituras Brasil afora pelas apresentações de cantores sertanejos.
Nunca ficou tão evidente como é o pagador de impostos que banca os cachês milionários de Gusttavo Lima, por exemplo, artista bolsonarista que lota shows em feiras agropecuárias em cidades do interior defendendo Deus, pátria, família e liberdade entre uma música e outra.
Quando zombou de Anitta, Zé Neto afirmou que não dependia da Lei Rouanet e que seus cachês “quem paga é o povo”. A discussão que se seguiu à sua frase, dita num show em Mato Grosso, mostra que os sertanejos, em geral apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, se valem de recursos públicos para impulsionar suas carreiras, ainda que se gabem de não usar a Lei de Incentivo à Cultura.
Isso desbanca a tese de que só artistas de esquerda usam dinheiro do governo, uma das principais pautas da guerra cultural acirrada nos anos de governo Bolsonaro. Empoderados pelo discurso anti-Rouanet do presidente, bolsonaristas acusam cantores como Daniela Mercury e Caetano Veloso de “mamar nas tetas do governo” ou de “assaltar os cofres públicos”.
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Os sertanejos não são os únicos contratados pelas prefeituras. A Virada Cultural de São Paulo, por exemplo, pagou R$ 200 mil usando verbas do maior município do país para Ludmilla, que pediu à plateia para fazer o “L” e saiu do palco com o telão alternando entre as cores vermelha e branca, as mesmas do Partido dos Trabalhadores, o PT, numa prova de que artistas de várias posições do espectro político recebem dinheiro público.
No entanto, são os sertanejos que, diferentemente dos cantores de outros gêneros, percorrem o Brasil de norte a sul e vão a cidadezinhas do interior para se apresentar em festivais do agronegócio. Muitos inclusive aproveitam as visitas para gravar CDs e DVDs repletos de referências às cidades, bancados pelas prefeituras.
Qual é, então, a diferença entre um show pago com verba da administração municipal e outro financiado pela Rouanet? Enquanto num caso é a prefeitura que vai até o artista e o contrata sem licitação, no outro é o artista que procura o Estado e precisa enfrentar um processo de várias etapas até obter a verba.
Um processo também é mais obscuro que o outro. É quase impossível produzir um levantamento com todos os cachês pagos pelas prefeituras a determinado artista, diferentemente do que ocorre com a Rouanet, que mantém um banco de dados único com todos os projetos financiados. Para encontrar os contratos das administrações com os sertanejos, é necessária uma varredura no site de cada prefeitura entre centenas de documentos. É, portanto, mais fácil ocultar essa verba.
Os valores e as negociações também são muito diferentes. O cachê da Rouanet para um artista não pode ultrapassar R$ 3.000, valor que antes era de R$ 45 mil, mas foi reduzido durante o governo Bolsonaro. Já via prefeitura não há limite. Os cachês de Gusttavo Lima, por exemplo, têm variações de até 50%. Se numa cidadezinha de Roraima ele cobra R$ 800 mil, noutra, de Minas Gerais, o valor sobe para R$ 1,2 milhão.
Além disso, via Rouanet, o artista precisa propor uma ideia ao governo e detalhar todos os gastos necessários, como transporte e aluguel de equipamentos, com três orçamentos para cada item. A proposta então vira um projeto, que é encaminhado a um parecerista responsável por avaliar se os valores condizem com o mercado.
Mesmo depois da bênção final do governo, o artista não recebe o valor. Ele só passa a ter autorização para ir atrás de empresas que possam financiar sua empreitada, que depois precisa ser detalhada e submetida a uma prestação de contas rigorosa, o que não ocorre via prefeituras.
Essa discussão detonou uma crise sem precedentes para os sertanejos, que levou detratores nas redes sociais a instituírem a própria “#CPIDoSertanejo” e, brincadeiras à parte, pôs o Ministério Público na cola de prefeituras em Minas Gerais, Roraima e Rio de Janeiro. A entidade quer saber da prefeitura de São Luiz, cidade com 7.000 habitantes dona do segundo menor PIB de Roraima, qual retorno os moradores terão com um show de Gusttavo Lima que custou R$ 800 mil.
O MP questiona ainda de onde veio o dinheiro do cachê. É uma pergunta crucial, que noutra cidadezinha a milhares de quilômetros dali —Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, a 163 quilômetros de Belo Horizonte— levou ao cancelamento de um show que custaria R$ 1,2 milhão à prefeitura. Isso porque o dinheiro tinha vindo de uma verba que só poderia ser destinada a educação, ambiente e infraestrutura.
Os mesmos questionamentos são feitos à Prefeitura de Magé, a cem quilômetros da capital fluminense, que pagou R$ 1 milhão ao cantor, valor dez vezes maior do que aquele governo municipal deve investir em atividades artísticas e culturais durante o ano todo.
Gusttavo Lima, que foi o segundo artista mais ouvido do Spotify no ano passado, virou o pivô da polêmica por ter o cachê mais alto entre os sertanejos do país. Outros músicos bastante populares recebem bem menos. A dupla Zé Neto & Cristiano, por exemplo, embolsa entre R$ 180 mil e R$ 550 mil, enquanto Bruno & Marrone tocam por R$ 500 mil, para citar dois exemplos.
Lima nega irregularidades. Por meio de sua assessoria de imprensa, ele afirmou que “não pactua com ilegalidades” e que não é seu papel “fiscalizar as contas públicas”. As prefeituras de Conceição de Mato Dentro, São Luiz e Magé também negaram irregularidades e disseram que estão atendendo aos pedidos do Ministério Público e colaborando com as investigações.
O cantor também foi ao Instagram se queixar de perseguição. Numa live nesta segunda-feira, chorou e pediu que seus fãs rezem por ele. “É muito triste ser esculhambado, tratado como se fosse um criminoso. Aqui existe um ser humano, um pai de família. Ninguém aqui é bandido”, disse.
Nesta terça-feira, o ex-secretário especial da Cultura, Mario Frias, afirmou que Lima “está sendo vítima de uma tremenda covardia por parte da grande mídia por vender seu show e ganhar dinheiro honestamente”. Ele também disse que o cantor mineiro é “um garoto que vem de baixo e com o suor do próprio rosto alcança sucesso e a realização de seus sonhos”, insinuando que outros artistas dependem do Estado para tanto. Bolsonaro, por sua vez, saiu em defesa dos “sertanejos mais humildes”.
Anitta, que originou a polêmica de forma involuntária, ficou dias em silêncio, até se manifestar com um único tuíte. “E eu achando que estava só fazendo uma tatuagem no tororó.”
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