Após quatro dias de mostra competitiva com 22 filmes, a 18ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA) na Cidade de Goiás se prepara para premiar o melhor filme por escolha do júri, popular e da imprensa. Ao longo de cada um dos dias, todas as manhãs, o festival realizou um debate aberto com os cineastas sobre seus filmes, o festival e a causa do meio ambiente em geral.
Mais ainda: dava a oportunidade de perguntar diretamente aos realizadores sobre suas técnicas e motivações. Um dos filmes que mais envolveram o público foi a animação iraniana Vaghti Bacheh Bodan (Quando eu era criança, em tradução livre), de Maryam Kashkoolinia. “É minha primeira viagem ao Brasil e estou muito feliz de ter vindo ao festival FICA. As pessoas são muito bondosas e gentis e estou muito satisfeita de exibir meu filme aqui”, disse ela. O curta fala de uma menina que tem medo de monstros e criaturas das histórias de seus pais e usa uma técnica de animação artesanal: “Usei uma técnica que usa apenas um animador e que se chama animação com areia. Ele usa areia sobre uma caixa de luz e filma as sombras por cima. É feito passo a passo, tira uma foto, mexe um pouquinho, tira outra, é bem trabalhoso”. Maryam contou que o filme é baseado na própria infância e que ela acha que assustar as crianças não é uma boa forma de educar: “Minha mãe e minha avó criaram a gente assim, falando de monstros. Elas tinham muito medo principalmente que eu fosse sequestrada. Eu realmente acreditava que havia um lobo atrás de cada porta. Acho que o meu ponto é que essa não é uma boa maneira de criar uma criança (risos)”.
Bruna Fernandes, produtora, veio ao FICA representando o curta Edifício Tatuapé Mahal das paulistanas Carolina Markowicz e Fernanda Salloum falando pelas diretoras: “Estamos muito felizes e honradas, mas infelizmente não pudemos participar devido a outros compromissos profissionais. Para produzir estes nove minutos foi necessário 45 diárias de filmagens e mais de seis meses de pós-produção. Fazer este filme foi um aprendizado e estamos muito felizes com a trajetória dele até agora que inclui estreia internacional no festival de Toronto e passagem em outras cidades como Edimburgo e Atlanta”, contou, lendo um comunicado. A animação cômica chamou a atenção por ter como protagonista um boneco argentino e ser todo em espanhol: “A ideia foi da Carol porque ela gosta muito de espanhol. Ela até fez outro filme agora que também é todo em espanhol, é uma escolha dela. O filme não usa só stop-motion, 30% é animação 3D”.
Outro filme que teve grande adesão do público e é um dos favoritos da premiação é o goiano Taego Ãwa dos irmãos Marcela e Henrique Borela. O filme fala sobre Tuttawa Ãwa, líder dos índios avá-canoeiros do vale do Araguaia, e sua tribo, reduzida agora à seus filhos, netos e parentes mais próximos. A diretora contou um pouco sobre sua motivação: “o filme trata de um encontro de imagens; eu encontrei umas fitas VHS na universidade quando eu estudava lá na época que grupos de estudantes da UFG filmaram dos avá-canoeiros no vale do Araguaia no contato forçado que aconteceu em 1973 pela Funai nas proximidades da Ilha do Bananal e elas me impactaram muito, fiquei com aquilo. Quando eu vi essas fitas eu tinha uns 20 anos e meu irmão tinha 14. O tempo passou, ele fez a formação dele em Ciências Sociais e se tornou uma pessoa especialmente engajada em antropologia e sobre a questão indígena e ele reencontrou essas fitas e começa a fazer perguntas para essas fitas e a partir disso a gente começa a pensar. A gente começa a juntar mais e mais imagens e percebe que especialmente a família do Tuttawa foi muito fotografada, muito filmada. Os avá-canoeiros do Brasil Central formam o grupo que mais resistiu ao contato. A perseguição começou ainda no século XVIII e XIX e o contato só vai acontecer em 1973. Juntamos tudo o que vocês puderem pensar, fotografias, imagens, vídeos institucionais, e resolvemos ir lá levar estas imagens que a gente juntou para eles e talvez fazer um filme a partir disso. Pensamos de forma crítica como estas imagens deixam claro um discurso de opressão posto nestes 40 anos, como de animalidade, extinção, uma série de argumentos que tentam negar a etnicidade desses índios e, é claro, o direito a terra. Então quando a gente chega em Taego Ãwa em 2011 a gente descobre que eles estão reinvindicando a terra e é aí que o filme se manifesta”.
No filme, é possível ver diversas reportagens e imagens originais de época que mostram a cobertura da imprensa sobre o contato forçado dos então chamados “índios negros dos javaé do Araguaia”. Marcela revelou durante o debate que o território de Taego Ãwa foi demarcado em maio na madrugada do afastamento da presidente Dilma Rousseff. A realizadora também comentou sobre o foco do filme no patriarca Tuttawa, já falecido: “O Tuttawa é a liderança dos avá-canoeiro desde quando eram um grupo muito maior e passou toda essa cultura, toda essa língua para os seus filhos, netos, porque é um grupo que já era muito reduzido e que agora basicamente está restrito apenas a essa família. É impressionante ver a capacidade de resistência dos avá-canoeiro a partir de seus laços afetivos. O filme é sobre isso, é como Tuttawa resistiu dando carinho para seus filhos e netos”.
Nos debates, o filme A Grande Nuvem Cinza, do paranaense Marcelo Munhoz, foi alvo de diversas perguntas. Em um documentário sem narração, o filme acompanha uma safra de fumo no interior do Paraná a partir da perspectiva de diversas famílias. Temas como família, terra, êxodo rural, violência e agrotóxicos se misturam sem ser necessário uma abordagem didática.
O cineasta contou que queria fazer um filme de denúncia, mas que mudou sua perspectiva após conhecer os agricultores: “A gente começou a escrever um filme de denúncia para falar das condições muito desiguais entre a indústria fumageira e os fumocultores e o Brasil é o maior exportador de fumo do mundo. É uma questão imensa. No sul isso é muito forte. O fumo é uma cultura muito trabalhosa, que não pode ser mecanizada, isso atraiu muito minha atenção e é por conta desse volume de trabalho que ela exige. As pessoas possuem uma relação de amor profundo com essa planta, mas também dessa pressão financeira do mercado mundial e do agronegócio cada vez mais forte. E indo pro interior o que encontrei foi uma coisa bem diferente. Eles são muito desconfiados, é uma região de colonização alemã e poloneza e eles são muito pressionados pelo que eles plantam, há um sentimento de culpa muito grande. Virou um filme mais íntimo, esse convite constante do mundo para que aquelas pessoas saiam dali, seus desejos, ansiedades. Se tornou menos sobre o conflito e mais sobre o conflito interno dessas pessoas. Eu queria comunicar essas questões, mas também mostrar o meu profundo respeito por essas pessoas”.
Neste domingo (21), o debate contou com três filmes que falam sobre mineração de uma forma diferente e teve a presença dos cineastas Georg Tiller, da Áustria, com o filme industrial White Coal; com o alemão Felix Roben e seu filme Coal India, sobre as condições de trabalho desumanas da maior mineradora do mundo; e do belga Christopher Yates com o filme Reveka, sobre a mineração de prata em Potosi, na Bolívia. Dos três, o filme belga foi um dos que chamou mais a atenção: “É um filme sobre o subterrâneo, em todos os sentidos”, disse Yates, “por lá há toda uma mitologia sobre deuses subterrâneos, sonhos e fantasmas”.
Georg Tiller, Felix Robben e Christopher Yates
Críticas
Embora muitos diretores tenham usado o espaço para agradecer e elogiar o festival, outros aproveitaram o momento e a presença da imprensa para fazer algumas críticas e sugestões. O goiano Daniel Calil de E o Galo Cantou chamou a atenção para a grande movimentação durante as sessões da mostra competitiva, especialmente de escolares em grupos grandes e que faziam muita bagunça durante a exibição e conseguiu aplausos dos presentes. “Foi a primeira vez que exibi meus filmes para os atores e eles saíram de lá muito mal. Eu fiquei muito constrangido, foi transtornante aqueles grupos de até 60 pessoas gritando, mexendo no celular”. Ele reconheceu a importância do intercâmbio com as escolas, mas pediu organização: “É extremamente importante e saudável que os jovens tenham acesso e se relacionem com as obras, mas é necessário ter um cuidado”.
Já o crítico de cinema e diretor estreante Fabrício Cordeiro, do curta Leblon Marista, criticou a projeção: “O FICA é um festival que possui um orçamento enorme e não tem projeção em DCP, que o Piri Doc, um festival com 1/5 do orçamento, este ano teve 100% de projeção em DCP com um custo de R$ 60 mil”.
Em conversa com a imprensa neste domingo (21), o diretor do evento, o professor Lisandro Nogueira, se manifestou sobre estas críticas: “Ano que vem 100% DCP, foi um erro nosso em relação a projeção, mas que será resolvido no ano que vem. Sobre as crianças, nós demos uma enxugada na programação para não ter nada rivalizando com a mostra competitiva e acaba que elas por não terem outra atividade acabam indo parar lá. Mas concordo, essa questão levantada é importante, afinal, elas são crianças e adolescentes e o público e especialmente o júri da mostra competitiva precisa de concentração. A gente tem que ter um rigor na mostra competitiva”.
Também foi levantada a questão da acomodação. Como o Teatro São Joaquim permanece em reformas, a sala de cinema foi montada no Colégio Estadual Sant’Anna, igual ao ano passado. Em 2015, foram usadas cadeiras de plástico. Este ano, elas eram de madeira, mas alguns jornalistas levantaram a questão de que os assentos deste ano eram mais desconfortáveis que os do ano passado. O professor disse: “O FICA desde 1999 acontece no teatro São Joaquim com trezentos e poucos lugares, mas ano passado e este ano, por causa da reforma, estamos tendo que lidar com improviso. E a improvisação sempre é ruim. Tivemos que mudar a data duas vezes e nessa mudança estava previsto cadeiras com braços e de última hora não achamos as cadeiras que a gente precisava. A situação foi realmente desconfortável e a gente pede desculpas. No ano que vem vamos voltar para o teatro e teremos uma experiência mais confortável”.
O professor Lisandro também anunciou a data do FICA do ano que vem: de 20 a 25 de junho. Agora, a cidade se prepara para a premiação que acontece logo mais às 17h. Entre os favoritos estão Taego Ãwa, dos irmãos Borela, e La Supplication, de Pol Cruchten. O filme é uma adaptação do livro Vozes de Chernobyl da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Alexijevich.