Quintal deBetti

Ex-funcionárias denunciam assédio em restaurante de açougueiro ‘influencer’

Denúncias também apontam prática de racismo por parte dos gerentes, além do descumprimento de obrigações previstas nas leis trabalhistas

O restaurante especializado em carnes Quintal deBetti, localizado na Cidade Jardim, bairro nobre de São Paulo, está respondendo a 18 processos na Justiça do trabalho. Ex-funcionários acusam o estabelecimento de ser palco de assédios sexuais e morais e prática de racismo por parte dos gerentes, além do descumprimento de obrigações previstas nas leis trabalhistas.

O estabelecimento é uma churrascaria badalada, cujo sócio-fundador é Rogério Betti, de 41 anos, herdeiro de uma rede frigorífica que chegou a ter 38 lojas na década de 1980. Ele também ficou conhecido como jurado do reality show culinário “BBQ Brasil”, do SBT, ao lado de Carlos Bertolazzi. Após deixar o mercado financeiro em 2014 para se dedicar exclusivamente ao ramo da família, Betti inaugurou o Quintal deBetti em 2018. Os pratos comercializados chegam a custar R$ 99 para uma pessoa.

Segundo antigos trabalhadores da casa, o assédio sexual é enraizado na cultura da empresa e, apesar de a acusação ser direcionada aos gerentes, eles consideram que houve conivência dos patrões, já que as denúncias eram ignoradas.

De acordo com as denúncias, funcionárias em período de experiência eram coagidas a sair com os gerentes em troca de efetivação nos cargos. Quatro gerentes citados nos processos, identificados apenas pelos apelidos de Menotti, Maradona, Alex e Vinícius, são acusados de assédio verbal e físico contra dezenas de funcionárias, incluindo apalpadas e carícias nas vítimas em local de trabalho e sem o consentimento delas.

A mais grave entre as acusações consta num processo movido no último mês de junho, em que a ex-funcionária A. N. alega ter sido vítima de assédio e racismo por parte de seu líder direto. Conforme ela relata no processo, o homem fazia insinuações e elogios ao corpo dela durante o período de trabalho e também por WhatsApp. Consta ainda que ele costumava esbarrar propositalmente em seu corpo, se aproveitando de aglomerações no restaurante.

“Amo negras. Negras são mais quentes”, “minha morena” e “que bocão você tem”, eram alguns dos comentários que A. relatava ouvir diariamente em seu ambiente de trabalho, conforme mostram prints de uma conversa com o Whatsapp ao que o UOL teve acesso. Ela afirma ter procurado o RH e a chefia, que não tomaram atitude. Logo em seguida, foi demitida. A defesa de A. pede uma indenização no valor de R$ 220 mil.

Em entrevista ao UOL, A. N. relatou que começou a sofrer assédio desde a entrevista de emprego. “O próprio líder me entrevistou e no primeiro dia comentou que eu era muito bonita e que ia me dar um avental para ‘tapar tudo isso aí’. Seguiu todos os dias me convidando para sair, para ir beber com ele. O horário de trabalho era escravo. Quando eu pedi para ser fixa, ele me levou para trás da churrasqueira e falou: ‘você sabe como faz para entrar na equipe fixa né?'”, conta.

“Não era só comigo, era com todas as meninas. Presenciei gerente passando a mão no peito das meninas, tentando dar selinho à força. Quando ele viu que não ia ter nada comigo, me mandou embora”, conta. A ex-garçonete afirma que chegou a denunciar o que aconteceu para o próprio Rogério Betti. “Em vez de me proteger, a empresa simplesmente me mandou embora. Hoje eu tenho medo, ansiedade, fico deprimida com essa história. Eu gostava de trabalhar lá, mas perdi essa oportunidade porque eles são coniventes com assédio sexual”, diz.

Outra reclamante, L. N. alega ter sido perseguida durante meses por outro gerente. Mãe solo de três crianças, ela entrava no restaurante às 11h e saía às 23h. Não raro, o gerente a segurava em alguma tarefa demorada para que ela perdesse o último transporte. Ele, então, insistia em levá-la até em casa.

Na frente de outros três líderes, L. foi coagida a sair com o gerente em questão como condição para que fosse efetivada na função de garçonete. Quando denunciou internamente o que estava acontecendo, L. foi instantaneamente demitida.

A defesa de A. N. pede indenização de R$ 225 mil. A defesa de L. pede R$ 160 mil. As defesas já foram apresentadas e não houve avanço no acordo. Os dois processos tiveram recentemente as audiências adiadas, a de A. N. tem data marcada para maio de 2021. O processo de de L. N. corre em sigilo de justiça.

‘Explícito, generalizado, constrangedor’

Outros três funcionários ouvidos pela reportagem confirmam que as agressões eram recorrentes e que a chefia e o RH, quando procurados, puniam as vítimas com demissões, e não os assediadores. Ainda segundo as denúncias, o núcleo dos gerentes fazia apostas em dinheiro para ver quem ia ficar com as garçonetes.

“Era rotina. Todos os líderes, sem exceção, eram coniventes com isso. Muitas garçonetes denunciaram e todo mundo era ciente. Eles ficavam abraçando, acariciando, as meninas com cara de nojo, dizendo ‘não’. Era bem explícito, era generalizado, era constrangedor”, relatou o ex-funcionário S. B.

Outra ex-funcionária, F. M., confirma que as mulheres sofriam pressão para sair com os líderes em troca de melhores condições de trabalho. “O Maradona me ofereceu várias vezes se eu queria ir embora mais cedo, contanto que eu saísse com ele. O Menotti mandava foto nu para as meninas. O Alex tinha costume de dar tapa na bunda das meninas, agarrava por trás. E a gente tinha que se fingir de desentendida porque nada era feito. De qualquer forma nós éramos punidas”, relatou.

A antiga faxineira D. S. afirmou: “Eu sou uma mulher negra, pobre, fui assediada lá dentro, não aceitei isso e fui mandada embora. Não denunciei porque não tenho chance contra eles”, relatou.

Casarão funcionava como ‘abatedouro’

Ainda segundo os ex-empregados, os atos sexuais eram realizados dentro do próprio estabelecimento, num casarão anexo ao terreno onde funciona o restaurante, que está sendo reformado para abrigar um novo salão.

O imóvel funciona ao mesmo tempo como estoque, vestiário, local de descanso dos funcionários e canteiro de obras. A antiga garçonete se referiu ao casarão como “um abatedouro”. “Era um motel lá dentro”, conta.

Outro lado

Questionado pelo UOL sobre o imóvel, Rogério Betti afirmou que “é um entra e sai de pedreiros e funcionários” e que “é complicado controlar tudo o tempo todo”. O sócio-fundador vem comprando outros imóveis e terrenos vizinhos, com intenção de ampliar o negócio. “São vários terrenos, vários imóveis, a gente vem crescendo”, afirmou à reportagem.

Questionado sobre os casos de assédio, Betti afirma que foi informado apenas sobre um episódio e que demitiu o funcionário envolvido. “Sou contra qualquer tipo de assédio, tenho duas filhas. Repudio veementemente a informação de que há uma cultura do assédio dentro da empresa”, respondeu ao UOL.

“É um funcionário que acusa outro funcionário. Não sou eu. São 280 empregados, é muito difícil controlar o que todos falam e fazem. Tem muita ‘rádio peão’ também”, afirmou.

Ele ainda relata que trocou de gerente de RH três vezes no último ano e que a empresa é “super diversa”. “Tem funcionários negros, mulheres, LGBTs, aprendizes. Dou oportunidade para muita gente nova, primeiro emprego. É molecada, dá muito trabalho”, concluiu.

Procurada, a assessoria de imprensa do grupo Manda Brasa, empresa que controla o restaurante, afirmou que “mantém as melhores práticas institucionais e acompanha com atenção o caso que, no momento, segue em segredo de justiça, nos impedindo de fornecer mais detalhes.”