Flávio Migliaccio foi dono de uma galeria de personagens históricos e populares
Ator construiu uma carreira de mais de seis décadas no teatro, no cinema e na TV, atuando, escrevendo e dirigindo
Flávio Migliaccio virou ator por acaso após ser expulso do seminário onde estudava para se tornar padre e assistir a uma apresentação numa igreja. Graças a esse incidente, o Brasil ganhou um de seus profissionais mais versáteis que, ao longo de mais de 60 anos de carreira, se destacou no teatro, no cinema e na televisão.
O ator, que morreu ontem, permanece vivo na memória dos espectadores. Quem assistiu a “Shazan, Xerife & Cia.”, seriado infanto-juvenil exibido pela TV Globo na primeira metade da década de 1970, não esquece da dupla que Migliaccio formou com Paulo José. A dupla, aliás, nasceu um pouco antes, na novela “O primeiro amor”, de Walther Negrão, também na Globo.
Especialmente consagrado no terreno da comédia – o que não significa que não transitasse por outros registros –, o ator aprendeu na prática com atores tarimbados. Fez claque para Dulcina de Moraes e o marido, Odilon Azevedo, assim como para Ronald Golias.
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Essas experiências talvez tenham contribuído para a criação de personagens impagáveis e populares, como Tio Maneco, imortalizado nos filmes dirigidos pelo próprio Migliaccio, em 1971 (“Aventuras com Tio Maneco”) e 1978 (“Maneco, o super tio”), e depois na série da TVE, na primeira metade dos anos 1980.
Na televisão também conquistou destaque em muitas novelas – como “Rainha da Sucata”, de Silvio de Abreu, só para citar um entre tantos exemplos.
Tornou-se conhecido pela interpretação de personagens estrangeiros: o indiano Karan, de “Caminho das índias”, de Glória Perez, o árabe Chalita, do seriado “Tapas & beijos”, de Claudio Paiva, e o palestino Mamede, de “Órfãos da terra”, de Duca Rachid e Thelma Guedes. Nesses programas, todos da Globo, Migliaccio evidenciou a habilidade na composição física e vocal de personagens que caíram no gosto do público.
A capacidade de entreter foi comprovada por meio da atuação em filmes como “Roberto Carlos a 300 quilômetros por hora” (1971), de Roberto Farias, “Boleiros: Era uma vez o futebol…” (1998) e “Boleiros 2: Vencedores e vencidos” (2006), ambos de Ugo Giorgetti, além da direção de “Os Trapalhões na terra dos monstros” (1989).
O ator também esteve em trabalhos emblemáticos tanto no teatro quanto no cinema brasileiro. Fez parte do elenco da histórica montagem de “Eles não usam black-tie”, que alavancou a trajetória do Teatro de Arena em 1958. Na encenação de José Renato, interpretou Chiquinho, filho mais novo de Romana e Otávio, integrante da família operária da peça de Gianfrancesco Guarnieri.
O espetáculo, inclusive, marcou o início da irmã Dirce na carreira de atriz. Flávio Migliaccio participou de outros espetáculos no Arena, onde se lançou como autor dentro do projeto do Seminário de Dramaturgia, com “Pintado de alegre”, texto montado pelo grupo no início da década de 1960.
Como outros atores do Teatro de Arena, Migliaccio participou dos filmes “O grande momento” (1958), de Roberto Santos, e “Cinco vezes favela” (1962), projeto conjunto formado por histórias dirigidas por Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges.
Outras produções importantes atravessaram a sua trajetória – entre elas, “A hora e a vez de Augusto Matraga” (1965), também de Roberto Santos, “Todas as mulheres do mundo” (1966), de Domingos Oliveira, e “Terra em transe” (1967), de Glauber Rocha.
Bastante constante na televisão, Migliaccio, porém, não abandonou outras áreas artísticas. No que se refere ao cinema, fez parte do elenco do filme “Jovens polacas” (2019), de Alex Levy-Heller, exibido há poucos meses no cinema.
Em relação ao teatro, dividiu o palco com Dirce Migliaccio, no final dos anos 1990, na bem-sucedida montagem de “Os ratos do ano 2030”, texto de sua autoria. E, nos últimos anos, ressurgiu em cena com “Confissões de um senhor de idade”. Nesse texto, que também escreveu, Migliaccio evocou a própria trajetória. Já seria o bastante, mas propôs mais: assumidamente ateu, o ator apresentou ao público uma conversa com Deus.