Crítica

Justiceiro: foi feita a justiça

Marvel finalmente consegue acertar no formato e no tom para um dos seus melhores anti-heróis

O Justiceiro sempre foi um personagem muito popular da Marvel. Frank Castle não apenas foi figurina carimbada nas HQs de outros heróis, cruzando o caminho dos Vingadores, dos X-men, do Homem-Aranhe e, é claro, do Demolidor, como até em desenhos animados mais cedo ou mais tarde ele dava as caras.

Sua transição para mídia live-action, porém, sempre foi problemática. O personagem teve três filmes próprios, todos independentes um do outro e com atores diferentes no papel principal: Dolph Lundgren (1989), Thomas Jane (2004) e Ray Stevenson (2008). Nenhum nunca fez jus ao personagem e não foram sucessos de crítica nem de público.

A coisa mudou de figura na segunda temporada de Demolidor, da Netflix. Escalado como vilão e na pele do sempre intenso Jon Bernthal, o Justiceiro é, de longe, a melhor coisa da temporada e seu arco é vastamente superior ao enredo central com ninjas imortais e artefatos secretos.

Foi tão bom que convenceu a Marvel e a Netflix a fazer uma série individual e, pela primeira vez, sem ligação com os outros personagens e heróis d’Os Defensores. Mas será que sozinho o seriado Frank Castle ia segurar a onda?

A resposta curta é: sim. O criador Steve Lightfoot (Hannibal) conseguiu criar uma primeira temporada excelente, guiada pelos personagens e com uma trama de vingança profundamente pessoal e amarrada. A série também ganha pontos com ótimas cenas de ação e um elenco de apoio bem construído e até se arrisca a falar de temas sérios como imperialismo, guerra perpétua, fascismo e, é claro, justiça.

A trama gira ao redor do passado de Frank Castle e dos crimes de guerra cometidos no Afeganistão. Após um jogo de gato e rato, ele acaba conhecendo Micro (Ebon Moss-Bachrach), um hacker que passou por uma situação muito parecida com a sua, mas cuja família ainda está viva. Cabe aos dois unirem forças para eliminar, de vez, os responsáveis por destruírem suas vidas.

O bom

A primeira coisa que deve ser elogiada é o elenco e seus personagens. É o conjunto Frank Castle e companheiros que faz a temporada funcionar, além de ter vilões bastante envolventes. Jon Bernthal está excelente como o Justiceiro.

Seu desempenho nesta série é muito mais intenso e visceral do que em Demolidor, resultando em um personagem de carne e osso e muito bem caracterizado: sua personalidade, trauma, problemas mentais, pavio curto… tudo é muito bem definido e expressado por Bernthal que extrapola o que poderia ser um reles casca-grossa genérico.

Bachrach entrega um Micro envolvente, às vezes ambíguo e com boas motivações. Embora o personagem às vezes pague o pato como alívio cômico, o personagem é muito bom e tem tantas camadas quanto Castle.

Além do fato de que são pessoas opostas forçadas a trabalhar juntas por uma causa. Essa dicotomia entre os dois é explorada com intensidade ao longo de toda a temporada em um relacionamento que se desenvolve e progride conforme os episódios passam.

Por fim, vale destacar Amber Rose Revah como a agente especial Dinah Madani e Ben Barnes como Billy Russo. É incrível ver uma série dessas não apenas com uma personagem feminina intensa no elenco principal, mas também uma mulher árabe. Ainda mais em um seriado que tem as incursões americanas no Oriente Médio como plano de fundo. Revah é sólida é entrega uma policial que é ao mesmo tempo incorruptível e a outra face da moeda de Frank Castle.

Ben Barnes, por seu lado, entrega um dos melhores desempenhos da sua carreira. Se ele parecia meio morto em O Retrato de Dorian Gray e outras produções prévias, ele pareceu se encontrar com Billy Russo. O personagem foi inteiramente repaginado em relação à sua versão nas HQs e o resultado foi excelente.

O seriado ganha pontos por seu roteiro que possui quatro arcos principais, todos eles ligados e móveis, um investimento bastante ambicioso da Netflix, cujas séries Marvel até agora foram bastante lineares (especialmente Os DefensoresPunho de Ferro). Temos Micro e o Justiceiro; temos a família do Micro e seus problemas; temos a investigação de Madani e temos Lewis Wilson (Daniel Webber), um veterano de guerra traumatizado prestes a fazer uma besteira.

Lewis tem todo um arco próprio que culmina cruzando com os demais arcos e que chama a atenção por ser a parte mais dedo na ferida de toda a série. E é este arco que dá o tom diferente e mais corajoso de O Justiceiro.

O Justiceiro foi sempre considerado meio fascista nas HQs: uma pegada meio bandido bom é bandido morto, a violência resolve tudo e assim por diante. O tom da Netflix está bem distante disso, optando por mostrar personagens no limite, instáveis mental e emocionalmente, e ao invés de culpar indivíduos, chama a atenção para grandes questões.

De maneiras às vezes sutis e às vezes óbvias, a série critica o estado de guerra perpétua dos EUA, sempre em busca de um novo conflito e a incapacidade política de manter a paz, o imperialismo americano sobre outras nações do mundo e o fascismo nacionalista alimentado por propagandas patrióticas e retórica segregacionista.

A temporada lida com isso tratando diretamente de uma ferida aberta dos EUA: terrorismo doméstico, um tema particularmente sensível em 2017, ano em que o país enfrentou vários assassinatos em massa, sendo o maior deles o que aconteceu em Las Vegas quando Stephen Paddock matou 58 pessoas e feriu 546.

Existem outros detalhes inteligentes e sutis, como Frank passar todo o primeiro episódio lendo Moby Dick, um clássico da Literatura mundial sobre obsessão e suas consequências destrutivas.

O ruim

O ruim é que às vezes tentar comportar todas estas coisas machuca a coerência e o ritmo da série. O começo é um pouco lento e muita gente pode se pegar pensando “por que diabos eu tenho que saber tudo da família do Micro?”.

Ao mesmo tempo, é difícil ter um subtexto sobre imperialismo, violência e fascismo quando seu herói em um maníaco armado. As armas são indissociáveis do Justiceiro e a série mostra o momento em que ele decide que não é mais uma questão de fazer justiça por sua família, mas que deve punir todos os criminosos que ele julgar indignos de passar por um tribunal.

Ou seja, há uma contradição: por um lado a série arrisca uma crítica sobre quem corrompe o sistema e por outro se entrega, mesmo que seja em nome de cenas de ação e espetáculo, a um discurso conservador sobre temas bastante sensíveis da cultura e da justiça interna dos EUA.

Os vilões, embora sejam muito bons, às vezes acabam caindo em clichês vilanescos, como se maquiavelicamente enrolassem as pontas de seus bigodes pontudos. Como é uma série sobre violência, o banho de sangue só vai ser catártico para a audiência se toda a sanguinolência for justificada. Para isso, todos os caras mãos precisam ser piores do que o cocô do cavalo do bandido, o que parece forçar a mão de vez em quando.

O veredito

No fim das contas, O Justiceiro é a melhor temporada da Marvel desde Jessica Jones e da própria segunda temporada de Demolidor. Ela com certeza não é leve e amigável como Luke Cage e seus temas mais pesados podem nem sempre encaixar ou fazer sentido no panorama geral, mas seu roteiro amarrado e ótimos personagens justificam muita coisa.

Vale muito a pena conferir esta adaptação que certamente vai se tornar a encarnação definitiva do Justiceiro fora dos quadrinhos.