Crítica

O Mecanismo: Lava-Jato e Noir made in Brasil

Nova série de José Padilha é uma caixa sortida, mas que agrada e dá porrada sem dó

Você provavelmente viu o incêndio nas redes sociais causado por O Mecanismo, nova série da Netflix criada e produzida por José Padilha, homem por trás de Tropa de Elite e de Narcos. Você também provavelmente ouviu falar que se trata de uma versão ficcionalizada da operação Lava-Jato. E no final das coisas o que virou tudo isso?

O Mecanismo erra muito como série, mas também é recheada de acertos. O programa consegue provocar e cutucar vários personagens envolvidos na investigação, em todos os lados. E não é nada sutil.

Padilha pega as crenças políticas da maior parte da população e simplesmente patrola por cima delas, não importa qual é a sua opinião. Embora os personagens tenham nomes diferentes, suas versões reais são evidentes.

E sobra paulada pra todo mundo. Só no primeiro episódio o cineasta critica o presidente João Ingênuo – um nome genial em si mesmo – e a candidata do Partido Operário, Janete, e logo parte, nos mesmos 40 minutos, para criticar o juiz Paulo Rigo de 1ª Instância, chamando-o de vaidoso e arrogante, e ainda dá tempo de dar porrada no candidato da oposição, notório por abusar de certas substâncias…

O bom

Assim como Tropa de EliteO Mecanismo não segura seus socos. É pé na porta, soco na cara. A série é profundamente crítica sobre todo o cenário nacional ao redor da corrupção e não apenas dos crimes envolvendo o alto escalão da política nacional.

E na maior parte do tempo ela é bem-sucedida em conseguir envolver e conquistar o público em querer saber o que vai acontecer mesmo com a trama principal seguindo a linha de eventos reais da investigação.

Em seus oito episódios, a primeira temporada acompanha principalmente dois personagens: Marco Ruffo (Selton Mello), um policial federal veterano, cansado e violento; e sua pupila, Verena (Caroline Abres), que é, no final das contas, a verdadeira protagonista da série e que encabeça a maior parte da ação. O fato de que capitalizaram em cima da imagem do Selton apesar de deixar a maior parte do protagonismo para Abres é uma questão à parte.

Juntos eles seguem a obsessão de Ruffo para derrubar o doleiro libanês Roberto Ibrahim (brilhantemente vivido por Enrique Diaz), mas logo a trama os leva a peixes muito maiores – ao presidente da maior estatal do País, a um cartel de empreiteiras e um esquema de corrupção que existe desde a proclamação da República.

Estes três atores citados acima estão excelentes em seus papéis e vale mencionar, ainda, Leonardo Medeiros como o presidente da Petrobrasil, João Paulo Rangel (como eu disse, sutileza nunca esteve na mesa).

Além de bons personagens, a série é tecnicamente interessante, com boas tomadas, especialmente aéreas, que apresentam bem as localidades, especialmente para os gringos que poderão assisti-la no exterior.

Gostei particularmente de boa parte da trilha sonora e achei a pegada detetivesca bem-sucedida a maior parte do tempo, o que combinou com o clima do seriado.

O ruim

Padilha é um diretor autoral. Seus traços estão por toda parte em Tropa, em Narcos e aqui também. Mas depois de ver os mesmos maneirismos tanto tempo, eles cansam um pouco e até mesmo atrapalham a narrativa.

Seus três protagonistas homens nessas produções são virtualmente o mesmo personagem e até certo ponto o policial torturado violento já se tornou uma fachada cansativa nas suas obras ao ponto de que Ruffo beira o previsível em algumas cenas. Há um quê de comissário Mattos nele também, mas pode ser só coincidência.

Outro maneirismo que peca é a narração em voice-over. Presente também em Narcos, ela é terrivelmente intrusiva aqui, porque a série tentou uma pegada diferente.

O Mecanismo vai numa onda meio noir que não é igual ao gato-e-rato de Narcos, com um certo foco no mistério e no imprevisível, inclusive com várias cenas noturnas. Embora a narração seja uma marca do noir, ela aqui rompe com um silêncio precioso e que tira muito da imersão, especialmente se levarmos em conta que existe uma tonelada de diálogos.

Por fim, esse tom e esse estilo nem sempre se encaixam. Uma coisa é ver o Padilha sem coleira em um filme de 90 minutos. Outra muito diferente é em uma temporada de oito episódios. Em dados momentos, o tom da série cai e ela mergulha num melodrama autorreferente bizarro que a faz ir de série policial para novela das 9 num piscar de olhos.

O veredito

O Mecanismo, assim como seu assunto, é um produto 100% único e brasileiro, tal qual a jabuticaba. É uma série muito boa com uma trama envolvente, ótimos personagens e, na maior parte do tempo, muito bem filmada e que não teve dó de criticar e dar porrada em todo mundo.

Isso não a isenta de defeitos técnicos e de narrativa que podem prejudicar, e muito, na imersão que ela proporciona, com um tom inconsistente e partes móveis que nem sempre se encaixam.