‘Soul’ traz primeiro protagonista negro da Pixar em trama sobre pós-vida
“No meio de uma apresentação com Miles Davis, eu toquei esse acorde, que saiu muito…
“No meio de uma apresentação com Miles Davis, eu toquei esse acorde, que saiu muito errado. Eu achei que tinha estragado tudo e reduzido aquela noite incrível a escombros. Miles respirou e tocou algumas notas, e fez o meu acorde parecer certo. […] Eu julguei o que havia tocado e o Miles, não. Ele fez o que qualquer músico de jazz deveria fazer – transformar qualquer coisa que aconteça em algo de valor.”
Foi a partir desse comentário de Herbie Hancock, sobre uma longínqua noite de música ao lado de uma das lendas do gênero, que os acordes de jazz impregnaram o roteiro de “Soul”, nova animação da Pixar, que chega ao Disney+ no dia de Natal.
O improviso e a personalidade do jazz serviram como a metáfora que o diretor Pete Docter procurava para ajudar a narrar a nova história que estava desenvolvendo para o estúdio. Em “Soul”, acompanhamos um recém-falecido que quer voltar à vida. No além, ele conhece uma alma que há séculos reluta em nascer.
“Temos uma alma que não quer fazer parte da Terra e outra que tenta convencê-la por que viver vale a pena. Não é um filme sobre o que acontece quando morremos, mas um filme sobre a vida”, diz Docter por videoconferência. É uma questão de perspectiva, de saber aproveitar o que você tem em mãos –como Miles Davis fez.
Depois que o cineasta e a produtora Dana Murray assistiram ao vídeo de Herbie Hancock falando sobre o episódio, eles finalmente encontraram a motivação para o protagonista de “Soul” querer, tão desesperadamente, voltar ao seu corpo.
No filme, Joe é um professor de música que deseja ser um jazzista. Nos primeiros minutos da trama, ele parece chegar perto do sonho. Animado com a possibilidade de se apresentar ao lado de uma estrela da música, ele caminha distraído pelas ruas de Nova York.
Joe desvia de perigos como motocicletas em alta velocidade e objetos despencando de obras, até que cai em um bueiro. A partir daí, passamos a acompanhar não mais o seu corpo de meia-idade, mas sua alma.
Não foi fácil definir como representar as almas que habitam a animação, afinal, elas são imateriais. O desafio foi ainda maior, diz Docter, do que o que ele enfrentou em 2015, ao decidir como ilustrar o quinteto de emoções que protagoniza um outro filme que dirigiu para a Pixar, “Divertida Mente”.
Vários artistas do estúdio foram escalados para pensar em alternativas, até que um deles descobriu o aerogel, um dos materiais mais leves e menos densos do mundo. Sua aparência azulada, quase transparente, serviu bem aos personagens, que ganharam contornos nas mãos, rostinhos fofos e adereços que ressaltam suas personalidades.
Madre Teresa, Maria Antonieta e Nicolau Copérnico são algumas das personalidades famosas que ganharam forma de aerogel para participações especiais na trama, em cenas curtas de humor latente, totalmente direcionado aos pais do público-alvo do cinema de animação.
Escolhida a forma que o protagonista tomaria no além, era hora de se voltar para a aparência de Joe em vida. Com o jazz emanando da trilha sonora e da narrativa de “Soul”, a decisão de fazer dele o primeiro protagonista negro da Pixar pareceu óbvia.
Para trazer autenticidade à história, o estúdio promoveu o corroteirista Kemp Powers a codiretor. Assim como Joe, ele é negro, de Nova York e costumava dar aulas de música. A estratégia é semelhante ao que fizeram em “Viva: A Vida É uma Festa”, quando o latino Adrian Molina também foi chamado para dividir a cadeira de direção.
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A decisão pode ser vista como uma tentativa de diversificar os talentos da companhia, ou de simplesmente blindar o filme de críticas. Molina, no caso, não está cotado para dirigir nenhum outro projeto futuro da Pixar.
Ao falar de seu trabalho em “Soul”, Powers reitera que o filme não é sobre a experiência de ser um homem negro nos Estados Unidos. Sim, o personagem é negro, mas essa é uma característica como qualquer outra. Por outro lado, o codiretor ressalta a importância de o público ver diferentes culturas representadas nas telas.
“Quando acrescentamos diversidade a uma história, as pessoas que fazem parte desse grupo que vai ser representado precisam ter a sensação de que alguém como elas ajudou a criar o que estão vendo. Nem sempre esse é o caso, mas é como os espectadores deveriam se sentir. Tem que ser autêntico para eles, porque se não for, é algo que pode te tirar de dentro do filme”, afirma o codiretor.
Powers e Docter – que, aliás, chefia o departamento de criação da Pixar – dizem que o estúdio espera, nos próximos anos, trazer às telas personagens mais diversificados, em um discurso que vem surgindo nas bocas de muita gente do setor recentemente e que, quando posto em prática, tem gerado bons retornos.
Parte da promessa será materializada em 2022, com “Turning Red”, animação de Domee Shi, canadense nascida na China. Dessa vez, a ex-desenhista vai dirigir o longa desacompanhada, sem firmar parceria com alguém da velha guarda da Pixar, como aconteceu com Adrian Molina e Kemp Powers. Ela será a primeira mulher a tocar um longa da companhia sozinha.
“Turning Red”, sobre uma garota de ascendência asiática que se transforma em um panda vermelho, será lançado nas salas de cinema, ao que tudo indica, e não diretamente no Disney+, como acontece com “Soul”.
A animação teve a estreia, originalmente prevista para junho, nos cinemas, adiada por causa da Covid-19. Agora, ela deve chegar diretamente a lares de todo o mundo, com a missão de usar o sentimentalismo e o otimismo que são marcas da Pixar para aquecer um Natal completamente atípico.
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