Crítica

Star Trek Discovery: onde nenhum homem jamais esteve

Nova série de Jornada das Estrelas quebra o molde da franquia clássica em vários pontos, o que é muito bom

Embora não tenha envelhecido muito bem, Jornada nas Estrelas ainda é uma das obras mais importantes da televisão em suas várias encarnações, seja na série clássica, em A Nova Geração ou no excelente spin-off Deep Space Nine.

Porém, ela é uma franquia envelhecida: ao contrário da sua rival Star Wars, ela permaneceu como parte do imaginário coletivo e da cultura pop, mas sem a constante renovação e influxo de novos fãs que a franquia de Lucas tem.

Um novo interesse só veio com os novos filmes encabeçados por JJ Abrams. Embora execrados por muitos fãs, eles foram o suficiente para instigar a curiosidade muitos jovens que querem saber: qual é a graça de Star Trek afinal?

Foi só uma questão de tempo até a CBS resolver investir em uma nova série, a primeira desde o fracasso de Enterprise, em 2002. Porém, Star Trek Discovery não é o que os fãs pediram. O novo programa tem vida própria e se afasta bastante dos seriados passados, tanto em tom quanto em estilo, trama e abordagem.

A nova série, disponível no Brasil pela Netflix, se passa mais ou menos 10 anos antes dos eventos da série clássica dos anos 1960 com capitão Kirk e Spock. Pela primeira vez, a protagonista não é um capitão de uma nave estalar e pela segunda vez é uma personagem negra e mulher.

Acompanhamos a saga de Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), uma ex-primeiro oficial desgraçada em busca de redenção e algumas pitadas de vingança. Ela se junta à Discovery, a nave mais avançada da Frota Estelar da Federação e encarregada de uma missão secreta. A série se passa nos anos iniciais da Federação e em meio a uma guerra aberta contra o Império Klingon, de forma que muitas das regras e dos protocolos vistos nas séries passadas estão, na melhor das hipóteses, em terreno nebuloso.

Sonequa Martin-Green como Michael Burnham (Divulgação)

O bom

Se faltava aventura e ópera espacial na sua vida, Star Trek Discovery vai suprir esta necessidade rapidinho. A primeira temporada é guiada por uma trama central, mas cada episódio possui um problema específico a ser resolvido. Não chega a cair no velho molde de caso da semana seguido a risca por várias séries, mas é variado o bastante para que personagens e enredo sempre progridam sem que nenhum dos lados fique muito tedioso.

O que achei melhor – e que muitos fãs certamente acharam o pior – é como a série sai totalmente de toda a zona de conforto de Jornada nas Estrelas até agora. Começando pelo fato de que a série é 100% focada na personagem de Burnham e guida por ela. Outros personagens próximos ganham certo desenvolvimento, mas ao contrário de séries anteriores, Discovery não é sobre um problema maior, sobre a nave e sua tripulação ou sobre sua missão: é uma história sobre Burnham e sua jornada, de modo que mesmo a guerra contra os klingons é apenas um pano de fundo e ponto de partida.

Aí está outro ponto que desagradou os fãs, mas que me agradou profundamente: os klingons. Seu visual passou por outra repaginada e está mais único, mais alien e mais intimidador do que nunca. Existe uma explicação no cânone para isso (e na qual não vou entrar) e que afasta o visual dos novo vilões de suas encarnações em séries que cronologicamente se passam depois.

Além disso, praticamente todo o diálogo klingon é em klingon, conferindo-lhes uma camada extra de autenticidade, e mesmo quando eles falam inglês seu sotaque é muitíssimo carregado, muito diferente do visto em séries passadas.

A escolha do período da trama também é bom: se passando durante a guerra, no período gestativo da Federação e antes das demais séres, Discovery se vê livre de várias imposições do cânone. Isto já foi falado, mas a série se permite ser mais sombria e pesada do que as demais, trabalhando temas como eugenia, genocídio e tortura.

Chris Obi como o klingon T’Kuvma (Divulgação)

O ruim

Dito tudo isso, os episódios que foram ao ar até agora ainda ficam um pouco aquém, especialmente em relação à A Nova Geração. O que mais faz falta é que embora os roteiros sejam baseados em decisões difíceis e individuais do tempo de guerra, os episódios tendem a não ser tão inteligentes quanto o esperado de Jornada nas Estrelas.

Isso não quer dizer que eles são rasos: em relação à recente trilogia de filmes, eles são quase enciclopédicos, mas não vão impressionar quem tenha assistido às melhores temporadas dos programas anteriores.

O novo foco em ação também não é muito bem-vindo: as sequências não parecem lá tão bem desenvolvidas e executadas. Sendo assim, é inevitável sentir falta de um formato mais clássico, voltado à política e à exploração. Tudo bem, a trama se passa em meio à guerra, mas seria muito bom ver o enredo se voltar para outros assuntos.

Como o foco fica todo em Burnham, outros bons personagens acabam sofrendo. Existem personagens muito bons em Discovery, mas que não são adequadamente explorados, como Tilly, sua única amiga, ou o incrível e complexo capitão Lorca, vivido por Jason Isaacs.

Por fim, temos os efeitos especiais. A série pareceu não se importar muito com suas restrições orçamentárias e o CGI ruim é uma distração intrusiva em vários momentos. Sendo assim, seria mais interessante que a série evitasse-os ao máximo ao invés de mirar em um espetáculo visual que eles simplesmente não podem bancar.

O veredito

A primeira temporada de Star Trek Discovery ainda não acabou: mais sete episódios devem ir ao ar a partir de janeiro. Porém, até agora, a série é muito boa e traz a aventura de volta a Jornada nas Estrelas ao mesmo tempo em que corajosamente vai aonde nenhum homem jamais esteve, tirando a franquia da sua zona de conforto.

É bom vê-la sacudir a poeira e tentar coisas novas, mas a série ainda não encontrou exatamente o seu tom e alguns problemas e pequenas contradições são perceptíveis, especialmente em comparação à séries passadas.

A sua liberdade em relação ao cânone é muito bem-vinda, mas é preciso ser mantida em cheque para que o programa não se torne Star Trek apenas no nome.

De qualquer forma, estamos ansiosos para os novos episódios e esperamos que Discovery tenha uma vida longa e próspera.