Youtubers brasileiros mudam o jeito de falar das crianças portuguesas
Sucesso dos irmãos Felipe e Luccas Neto do outro lado do Atlântico populariza termos como picolé, cara e galera
É uma invasão 2.0, para ficar na linguagem da internet. Após a tomada das televisões do país pelas novelas em meados dos anos 1970, agora os portugueses sintonizam canais brasileiros no YouTube. Se a brejeira Gabriela de Sônia Braga atrasava o trabalho dos deputados no Parlamento enquanto estivesse no ar, os irmãos Felipe e Luccas Neto renovaram a audiência pelas redes. Influenciados pela dupla carioca, crianças e jovens de Portugal trocam “gajo” por “cara” e já não saem com a “malta” para ficar com a “galera”.
Não entendeu? Os pais portugueses também não. Foram atingidos pela chuva de “joinhas” que dominou a web portuguesa. Precisam traduzir os próprios filhos, porque virou moda se expressar em “brasileiro”, como chamam em Portugal, com um tom de discriminação, a derivação da língua portuguesa escrita e falada no Brasil.
Felipe e Luccas Neto têm juntos mais de 70 milhões de seguidores no YouTube, sete vezes a população de Portugal. As entonações e gírias da dupla estão na ponta da língua e na palma das mãos, agarradas nos celulares. Linguistas consultados pela reportagem confirmam o registro de novas palavras no vocabulário, principalmente em alunos do ensino básico.
Ao que tudo indica, a maior parte da juventude portuguesa saiu do ninho da quarentena um pouco mais brasileira. Viraram “corujas”, apelido de Felipe para seus seguidores. Entre eles, estão Manuel e Henrique, de 8 e 12 anos, filhos do jornalista Gonçalo Castro.
— Felipe (Neto) faz lives no Brasil às 23h daqui de Lisboa. Os miúdos pedem para ficar acordados para ver. É interessante, porque repetem no dia a dia expressões como “cara” e outras que eles nem sabem o significado — diz Castro, que ainda tem Beatriz, filha mais velha, de 13 anos, que é ligada em vídeos brasileiros de estilo de vida.
Ele diz que o filho mais novo quer ser youtuber, ou streamer (precisamos de expressões portuguesas aqui), devido ao fenômeno brasileiro Zenon, codinome do menino Vitor Hugo, um ás dos games que acumula 460 mil seguidores aos 10 anos de idade. Num dos vídeos, ele e o pai cantam o hino “Horto mágico”, da torcida Legião Tricolor, do Fluminense. Cristiano Ronaldo que se cuide.
— Eles são viciados em conteúdos brasileiros no YouTube porque são os melhores — afirma Castro.
Em Faro, no Algarve, Andreia Paulino quase recusou um pedido do filho porque não entendia o que Pedro, de 5 anos, queria.
— Ele me pediu um picolé, e eu nem sabia que era para comprar um gelado. E também não diz “dá-me”, diz “me dá”, como no Brasil, como a galera — explica Andreia, que outro dia ouviu o filho soltar um xingamento popular no Brasil ao perder uma partida de PlayStation.
Para resolver um problema de dicção, ela procurou uma fonoaudióloga, que chegou a pensar que havia raízes brasileiras na família:
— Ela perguntou qual era a nacionalidade do pai, eu respondi que era portuguesa. Explicou que o Pedro tinha sotaque brasileiro, e eu não percebi que a dicção era diferente por isso também.
‘Nem parece portuguesa’
“Mãe, vou ao banheiro”, disse Rafael, de 8 anos, para Bruna Nunes. Fã do canal AuthenticGames, do mineiro Marco Túlio, com quase 20 mil inscritos, Rafa pode passar aperto em Portugal com a expressão.
— Aqui, é casa de banho. Ele também diz: “E aí, cara, tá legal?” E “joinha” não existia no meu vocabulário — comenta Bruna, especialista em marketing digital do Porto.
Mãe de Francisca, de 4 anos, e Bia, de 6, Tânia Pontes organizou o aniversário da mais velha com tema do TikTok em Vila do Conde, Norte do país. Bia é fã de perfis brasileiros, mas fala sem sotaque. Já a mais nova nem parece portuguesa, diz Tânia, que trabalha com moda.
— Palavras, entonação, frases e sotaque: genuinamente, é uma brasileira — brinca. — Não é grave, porque ela não entrou no ensino primário. Mas parece que nasceu e cresceu no Brasil, onde nunca fomos, porque os brasileiros invadiram o YouTube.
Para Diana Vianez, deputada municipal do Pessoas Animais e Natureza (PAN) em Póvoa do Varzim, há receio de as crianças receberem avaliações ruins na escola. Ela tem uma irmã de 4 anos, Maria Diogo Vianez, fã de Luccas Neto.
— Ela troca os pronomes. Diz “cachoeira” enquanto é mais comum dizermos “cascata”. Diz “dirigir” em vez de “conduzir”. Os pais têm limitado o tempo do conteúdo brasileiro e têm corrigido o que ela diz — conta Diana.
Professora do departamento de Línguas, doutora e investigadora de linguística da Universidade de Coimbra, Cristina Martins vê o fenômeno com bons olhos.
— A língua está viva, e o mundo deixa de ser restrito. Os pais veem com receio, mas muitos de nossos receios não têm fundamento. As crianças podem adotar a oralidade informal em meios não usuais. A questão é diferenciar do formal — observa Cristina.
Nem tudo são flores
Há inúmeros casos de discriminação nos meios estudantil e profissional. Um estudo revelou que as universidades portuguesas, onde há 20 mil brasileiros, não estavam prontas para o aumento de alunos estrangeiros. No mercado de trabalho, fonoaudiólogos brasileiros já foram acusados de não terem domínio sobre o idioma.
— Não há justificativa para receio. Estão preocupados com a exposição das crianças aos vídeos em inglês? A riqueza da língua portuguesa assenta na diversidade — diz João Veloso, linguista, professor e pró-reitor da Universidade do Porto.
Presidente do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, professora e investigadora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Margarita Correia prevê mudanças ainda maiores:
— Meu neto fala papai e mamãe no lugar de pai e mãe porque vê os vídeos. Faz parte da evolução da língua. Vamos todos assistir às mudanças trazidas pelo Brasil.