A luta antirracista de Aranha: de goleiro chamado de macaco a escritor
Goleiro que passou por um episódio de racismo enquanto atuava, lança um livro
Navios tumbeiros ou negreiros foram as embarcações que fizeram a travessia do Oceano Atlântico, da África ao Brasil, trazendo à força homens e mulheres negros escravizados. A palavra “tumbeiro” vem de tumba, caixa, pois muitos – quase um quarto em cada viagem – não resistiam aos castigos, à fome, à doença e maus-tratos e morriam nas viagens que levavam até dois meses. A palavra ganhou um sentido ainda mais potente e atual no livro “Brasil tumbeiro”, escrito pelo ex-goleiro Aranha.
“O título foi a primeira coisa que pensei do livro. Ele faz uma relação entre o Brasil da época da escravidão e o Brasil de hoje Morriam muitos negros nos tumbeiros, do mesmo jeito que acontece hoje no País, por vários motivos. Os negros, em sua maioria, continuam vivendo de maneira precária”, diz o ex-atleta Mário Lucio Duarte Costa que agora assina sua obras como Mário Aranha.
Vítima de um dos episódios de racismo mais marcantes do futebol brasileiro, quando foi xingado de “macaco” por alguns torcedores do Grêmio em uma partida da Copa do Brasil, em 2014, o goleiro encerrou a carreira em 2018 pelo Avaí, depois de passar pelo Santos, Ponte Preta, Palmeiras e outros clubes. Militante negro, o ex-goleiro de 41 anos sempre denunciou o racismo estrutural e o apagamento histórico da população negra. Mas precisava ir além das palestras para as quais sempre era convidado nas escolas e instituições públicas depois que se tornou um símbolo da luta antirracista nos gramados.
Foi aí que surgiu a ideia de seu primeiro livro. E o escritor resolveu dirigir sua mensagem para o público infanto-juvenil. “Uma mudança de pensamento nas pessoas adultas é mais difícil. É um processo mais demorado do que através dos jovens. Os jovens serão líderes em qualquer área. Por isso, a mudança deve começar com eles.”
Na obra paradidática, o ex-atleta resgata movimentos como a Frente Negra Brasileira e figuras como os Irmãos Rebouças, Juliano Moreira, Virgínia Bicudo, Teodoro Sampaio, que mostram o negro como protagonista da história do Brasil. “O grande moral do livro é fazer com que as pessoas, principalmente os jovens, entendam o mal que o racismo estrutural fez apagando referências, deixando somente o esporte e as artes para os negros. Nossa história foi contada de maneira fantasiosa”, critica o ex-goleiro. Aranha sempre teve o respeito de seus colegas de profissão.
O Estadão já conversou com Aranha várias vezes, antes e depois do episódio na Arena do Grêmio. Ele sempre comentou desse jeito, pausado, olhando no olho. Semblante fechado, assunto sério. Mas, agora, Aranha está diferente. Parece mais leve. “Estou satisfeito. O livro alcançou muitos objetivos e espaços de maneira rápida, natural e espontânea. Não fizemos divulgação, não procuramos a mídia, mas ele está conquistando um espaço importante”, diz o novo escritor.
O livro tem trilhando um caminho firme dentro e fora do Brasil. O lançamento oficial foi na Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, onde o autor participou de um bate-papo e uma tarde de autógrafos. Além disso, a Biblioteca de Washington, nos Estados Unidos, entrou em contato por e-mail com a Editora Mostarda, responsável pela publicação, pedindo exemplares para seu acervo. “A repercussão tem sido bastante positiva. Várias escolas já têm o livro”, avalia Pedro Mezette, idealizador do projeto da Editora Mostarda. O desafio agora é o desempenho comercial.
LIVRO NO CELULAR – “Brasil Tumbeiro” nasceu no celular de Aranha, que usava o bloco de notas para escrever. Como o conteúdo foi ficando extenso, um notebook se tornou necessário. Foram dois anos de trabalho e mais seis meses de insegurança antes de criar coragem para mostrar a obra.
O impulso para tirar o livro do fundo da gaveta veio da leitura de “Quarto de despejo”, obra-prima de Carolina Maria de Jesus que reúne 20 diários escritos pela mulher negra, mãe solteira, pouco instruída e moradora da favela do Canindé, em São Paulo. O olhar original da favela e sobre a favela foi traduzido para 13 idiomas. A editora adaptou o texto para linguagem infanto-juvenil, como uma publicação que vai auxiliar os professores na sala de aula. “Foi lendo o livro que eu criei coragem. Eu me inspirei na Carolina Maria de Jesus e escrevi do meu jeito”, conta Aranha.