POLÊMICA

Canto racista abre crise na seleção argentina e no governo

Os cantos racistas foram entoados na comemoração dos jogadores da Argentina após a conquista da Copa América

Jogadores da Argentina comemoram título da Copa América. Foto: Divulgação

MAYARA PAIXÃO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Talvez um dos únicos elementos que una um país hoje amplamente polarizado, a seleção argentina de futebol viu os louros da conquista da Copa América se mesclarem a um episódio racista.

O canto ofensivo entoado pelo meia Enzo Fernández, que depois pediu desculpas, abalou a imagem da seleção no exterior, levou à abertura de uma investigação pela Fifa (Federação Internacional de Futebol) e gerou bate-cabeça no governo do presidente Javier Milei.

Primeiro do governo que comentou o tema em público, o agora ex-subsecretário de Esportes Julio Garro foi demitido após afirmar que o capitão Lionel Messi deveria vir à público pedir desculpas por sua equipe. Apenas Enzo Fernández, hoje no Chelsea, manifestou-se.

Garro acabou demitido. Ao anunciar a decisão, a Casa Rosada afirmou que “nenhum governo pode dizer à seleção argentina campeã do mundo e bicampeã nas Américas o que comentar, pensar ou fazer”.

É um discurso que eleva à máxima potência a agenda de liberdades individuais pregada por Milei, mas, pelo que demonstra sua gestão, também abre espaço para manifestações racistas. Outro membro que saiu em defesa foi sua vice, a conservadora Victoria Villarruel.

No X, em referência não nominal à França, ela disse que “nenhum país colonialista vai nos colocar medo por uma canção de estádio nem por dizer verdades que não querem admitir; basta de fingir indignação, hipócritas”. E seguiu: “Enzo, estou contigo”.

Para Villarruel, o país “nunca teve colônias ou cidadãos de segunda classe; nunca impusemos a ninguém nossa forma de vida”.

Ainda que em menor escala do que em países como o Brasil, porém, a Argentina recebeu pessoas escravizadas, segundo a historiografia.

Até 1810, ano-chave no processo de independência local, Buenos Aires tinha em meio aos seus então 40 mil habitantes ao menos um terço de origem africana. O cenário é bem distinto hoje, porém: o mais recente censo divulgado neste ano mostra que apenas 0,7% dos argentinos, ou 303 mil pessoas, se reconhecem como afrodescendentes.

Mas o apagamento da presença negra na história local foi ruminando um cenário de resistência em debater o racismo. Apenas recentemente, a chamada “mãe da pátria” argentina, María Remedios del Valle, passou a estampar uma nota no país. Negra, ela foi uma das poucas mulheres que lutaram e lideraram a guerra de independência no país.

Para o sociólogo argentino Carlos Alvarez Nazareno, o futebol se tornou talvez o principal espaço de socialização no país e nele se reproduzem características do cotidiano da sociedade.

“E os discursos racistas estão tão institucionalizados e incorporados que, quando vêm à tona, nem sequer aceitam as críticas e pior, para se defender acabam sendo mais racistas.”

Ex-diretor de Equidade na Secretaria de Direitos Humanos do país, ele diz que houve historicamente um projeto político de “embranquecer o país e invisibilizar os povos originários e a população afrodescendente”. “Por isso seria tão importante existir um papel do Estado em políticas educativas.”

Episódios racistas já se repetiram em outros períodos, no campo e na política. Na própria Copa do Qatar, que a Argentina ganhou contra a França, o canto agora entoado por membros da seleção também era cantado por torcedores argentinos.

O cantigo que muitos argentinos dizem ser apenas um grito de arquibancada diz trechos como “jogam na França, mas são de Angola”, em referência aos membros da seleção do país europeu que é marcada pela forte presença dos filhos de imigrantes.

Antes, em 2021, o então presidente argentino, o peronista Alberto Fernández, que, investigado por denúncias de corrupção -hoje passa mais uma temporada vivendo em Madri-, afirmou que os argentinos chegaram em barcos. “Eram barcos que vinham da Europa”, disse. Enquanto “os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva”.

Enquanto os exemplos vão se acumulando e o país se afasta da tarefa de debater o racismo, a própria população afro-argentina, como se autodenominam os afrodescendentes no país, sente o impacto. “Se você tiver uma carga de melanina muito alta em sua pele, na rua já te perguntam ‘de onde você vem’. É uma ideia de que, com esse tom de pele, não se pode ser argentino.”