Caos e quase tragédia levaram Brasileiro a virar ano há duas décadas
Torneio marcado por disputas judiciais e ação ostensiva de dirigentes terminou com título do Vasco
A pandemia do novo coronavírus, que paralisou o calendário do futebol por quatro meses, vai levar as competições de 2020 a se estenderem até 2021. Será o retorno de algo que já foi comum no Brasil, o avanço dos torneios além de dezembro, prática que havia ficado para trás no início deste século.
A última vez em que o Campeonato Brasileiro superou a virada para janeiro ocorreu de 2000 para 2001. Na ocasião, chamada de Copa João Havelange, a competição foi caótica do início ao fim, uma bagunça com 116 clubes cujo o término deveria ter ocorrido em 30 de dezembro. Aí, uma quase tragédia interrompeu a final e a deixou para o mês seguinte.
Na decisão entre Vasco e São Caetano, o alambrado cedeu e houve uma avalanche de pessoas na direção do gramado de São Januário. Foram registrados mais de 200 feridos e, incrivelmente, nenhuma morte. Finalmente concluído em 18 de janeiro, o certame teve a marca da desordem e influência nas mudanças que viriam no calendário, com a adoção dos pontos corridos.
Tudo começou nas disputas judiciais que envolveram o Campeonato Brasileiro de 1999. Rebaixado no tapetão, o Gama entrou na Justiça comum para evitar a segunda divisão, ganhou o direito de ficar na primeira divisão e criou um impasse. A CBF (Confederação Brasileira de Futebol), então, transferiu a organização do torneio de 2000 para o Clube dos 13, grupo das mais poderosas equipes do país.
A solução encontrada foi adotar uma disputa inchada, com os times divididos em quatro módulos. Era possível, por exemplo, partir do módulo verde ou do branco, formados por clubes que estariam na Série C, e chegar ao título. O São Caetano saiu do amarelo, composto basicamente por quem estaria na Série B, e avançou à decisão.
O torneio teve novas batalhas judiciais, públicos pequenos nos estádios e na TV, além de problemas com o calendário. Envolvido também na final da Copa Mercosul, o Vasco chegou a afirmar que não entraria em campo contra o Cruzeiro, na semifinal, antes de conseguir uma liminar para adiar o embate.
O atraso acabou deixando para 30 de dezembro o jogo derradeiro, inicialmente previsto para o dia 17. Mas o confronto foi interrompido aos 23 minutos do primeiro tempo, quando torcedores do Vasco começaram a brigar entre si após a substituição do contundido Romário. Na confusão, o alambrado de São Januário não resistiu.
“Não poderia ser pior. A Copa João Havelange, do inchaço, da virada de mesa, do regulamento esdrúxulo e da falta de comando, conseguiu ontem superar sua própria natureza”, observava a edição da Folha do dia seguinte, que trazia relatos minuciosos da quase tragédia e da queda de braço referente ao possível reinício da partida.
Eduardo Viana, o popular Caixa D’Água, e Eurico Miranda lideraram uma desastrada operação de limpeza do gramado. Enquanto helicópteros pousavam para o resgate de feridos, o presidente da Ferj (Federação de Futebol do Estado do Rio) e o presidente eleito do Vasco tentavam tirar as pessoas do campo para o jogo ser recomeçado.
“Vem cá, meu filho, vai para lá”, afirmou Eurico a um garoto que estava sentado, à espera de atendimento. “Se você pode andar, cai fora. Se não pode andar, fica aí”, dizia o cartola aos caídos, enquanto xingava jornalistas e dava a certeza de que a partida seria concluída naquele sábado: “Quem manda aqui sou eu”.
O São Caetano era contra a retomada do duelo, mas seu presidente, Nairo Ferreira de Souza, disse ter ouvido a ameaça de que a vaga conquistada na Copa Libertadores de 2001 seria retirada do time caso ele não voltasse ao gramado. Policiais militares chegaram a organizar um cordão de isolamento na área do alambrado derrubado e os atletas se posicionaram, mas a bola não voltou a rolar.
O governador do Rio à época, Anthony Garotinho, vendo o caos pela televisão, telefonou ao secretário da Defesa Civil, Paulo Gomes Filho, e ordenou a interrupção. Eurico, então, chamou Garotinho de “frouxo” e instruiu seus jogadores a pegarem a taça e desfilarem como campeões, já que o 0 a 0 no placar beneficiava a formação carioca.
O escárnio, claro, não definiu o dono do troféu. Havia naquele momento a impressão de que o título seria dividido, hipótese que pareceu provável porque os dois clubes deram férias a seus elencos. Mas algumas reviravoltas ainda ocorreriam até que a partida fosse começada de novo, do zero, dali a quase três semanas.
O estádio de São Januário foi logo interditado. Um laudo da Polícia Civil fluminense apontou superlotação, e múltiplos processos judiciais se estenderam por mais de uma década. No curto prazo, do ponto de vista esportivo, a questão era como decidir o campeonato, e acabou prevalecendo o plano de remarcar a final.
Essa foi a resolução adotada pelo Clube dos 13 e referendada pelo STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva), por nove votos a zero. As equipes fizeram os atletas retornarem precocemente das férias, enquanto Eurico Miranda abraçava a briga que havia comprado com a TV Globo, cujas reportagens eram pouco elogiosas ao cartola e então deputado federal.
O Brasil vivia naquele momento a CPI do Futebol, que investigava o contrato da CBF com a empresa Nike. Eurico foi depoente voluntário da Comissão Parlamentar de Inquérito e aproveitou o palco para explicar sua visão sobre o motivo da Copa João Havelange ter sido adiada: “Foi por causa do ‘Uga Uga'”.
“Uga Uga” era a novela “das sete” (19h) da Globo. O dirigente vascaíno sustentou, desde o próprio dia do jogo interrompido pela queda do alambrado, que o canal trabalhara para que sua grade de programação não fosse afetada pela paralisação do confronto.
Seu filho Euriquinho, então com 23 anos e já envolvido na direção cruzmaltina, chegou a comemorar um incêndio nos estúdios da emissora no início de 2001. “Eles foram criticar meu pai, e deu no que deu. É o feitiço se voltando contra o feiticeiro”, celebrou.
Como provocação e sem receber um tostão do SBT, Eurico botou o Vasco para jogar a decisão remarcada com o logotipo do canal de Silvio Santos, concorrente da Globo. E pôde contar com Romário, recuperado da lesão muscular que precipitara a confusão em São Januário.
“Infelizmente, haverá novo jogo”, lamentou César, um dos grandes nomes daquele time do São Caetano, um lateral esquerdo que construiria carreira na Europa. “Jogaram o regulamento no lixo. Eles mesmos escreveram e depois rasgaram tudo.”
O atleta entendia que o clube do ABC paulista deveria ser declarado campeão, já que a responsabilidade pelo estádio de São Januário era do Vasco. Mas não foi assim que viram a questão os cartolas do Clube dos 13, que confirmaram a partida para o dia 18, no Maracanã.
O treinador do São Caetano, Jair Picerni, previu um jogo ruim pela situação física. Adhemar, o artilheiro da competição, com 22 gols, falou em “encanto quebrado”, e de fato o time azul, com atletas vendidos e atuando com seguro, não manteve o nível que vinha apresentando.
Depois de deixar para trás Fluminense, Palmeiras e Grêmio, surgindo para cinco anos de relevância no futebol brasileiro, a equipe acabou sendo derrotada. O Vasco venceu por 3 a 1, com gols de Juninho Pernambucano, Jorginho Paulista e Romário, e levantou a taça de verdade.
Terminou assim aquela edição caótica do Campeonato Brasileiro, que voltaria às mãos da CBF em 2001. A desorganização foi tal que os problemas de 2000 tiveram influência na reordenação do calendário, com a instituição dos pontos corridos em 2003.
O sistema não agrada a uma parte considerável dos torcedores, mas a agenda anual ganhou previsibilidade e deixou de se estender até o final de dezembro ou ao começo de janeiro, como era comum. Isso até 2020, ano em que tudo foi afetado pela pandemia do novo coronavírus.
Os dirigentes do futebol brasileiro, preocupados com a possibilidade de perder a receita da televisão, recusaram-se a enxugar as tabelas. Assim, após 20 anos, o Brasileiro vai virar o ano sem um campeão.