Presidente encara machismo e leva clube cearense de futebol à Série C
“A primeira coisa que pergunto quando alguém vem me pedir emprego: você consegue ser mandado…
“A primeira coisa que pergunto quando alguém vem me pedir emprego: você consegue ser mandado por uma mulher? Se não consegue, veio ao lugar errado.”
Maria José Vieira, 45, conta aos risos ter formado uma perfeita “cara de general” desde que entrou no futebol, em setembro de 2017, quando assumiu quase por obra do acaso o antigo Uniclinic Atlético Clube, hoje Futebol Clube Atlético Cearense. O time conquistou no último domingo (17) uma vaga nas semifinais da Série D do Campeonato Brasileiro e o acesso à terceira divisão.
A pergunta que ela usa para recepcionar postulantes a cargos no clube é um dos reflexos de uma espécie de alter ego que criou para suportar o machismo no futebol.
“Ouvi coisas muito desagradáveis desde o começo. Pensava: por que estão fazendo isso comigo? Tudo me endureceu bastante. As minhas emoções, hoje, são muito controladas. Se eu explodir, ou chorar, pode se preocupar porque é sério. Fui perdendo a fragilidade. No meio do futebol, aprendi a ficar esperta”, diz à reportagem.
Formada em pedagogia, especialista em saúde comunitária e com curso técnico em agropecuária, ela concluía um MBA em gestão ambiental quando, cansada, resolveu parar para repensar sobre a própria vida.
Nessa época, foi apresentada por um amigo ao atacante Ari, que atuou durante toda a última década no futebol russo por equipes como Spartak Moscou, Krasnodar e Lokomotiv Moscou.
“Já ia fazer 41 anos e estava chateada com muitas coisas, saturada de tanto trabalhar. Quando conheci o Ari, falei que não queria fazer mais nada, mas ninguém consegue dizer não para ele”, recorda.
O jogador a convenceu a assumir um projeto novo: um time de futebol praticamente do zero, que herdaria a vaga na elite cearense deixada pelo Uniclinic, arrendada por sua empresa, a Arigooll Sports Agenciamento de Atletas de Futebol.
“Nunca joguei futebol, não sabia nada sobre gerir um clube de futebol. Não sei jogar, mas me propus a fazer algo olhando para a história do Ari. Um menino pobre, de comunidade, que vendia frutas na rua e virou atleta de alto rendimento. Precisava dar oportunidade aos meninos”, conta.
O time conseguiu uma histórica campanha em 2018, chegando à semifinal do Cearense, mas sofreu durante a pandemia de Covid-19 ao ficar sem calendário para jogar. No período, aproveitou para estruturar o centro de treinamento, antes deteriorado, hoje com três campos. A atenção para jovens valores também foi uma mudança.
“A primeira coisa que destruí foi um bar. Perguntavam: pode dar cerveja para os meninos? Não, o clube é só formação e futebol. Hoje eles têm cinco refeições, transporte e uma ótima estrutura.”
Constantemente, ela ainda escuta que foi posta no poder por ser “a irmã de Ari”, com quem não tem relação de parentesco, alguém que nem mesmo conhecia antes de 2017.
“O meu irmão tem doutorado em agronomia, mora em Maceió. Existe um machismo de forma velada, e existe a misoginia, que é um berço do machismo, aquele ódio pulsante só pelo fato de eu ser mulher e estar ali”, observa.
Em um jogo contra o Fortaleza, no Castelão, Maria escutou de um segurança, ao se dirigir ao vestiário da equipe, que teria a sua liberação porque “era mulher de jogador”. E também se irritou ao ouvir um “cala a boca, mulher” no estádio, com centenas de homens gritando para apoiar sua equipe.
“Fiz terapia para entender quem sou, onde estou. Na verdade, fiquei preocupada de não ver mais os cenários de que gosto, que me remetem à simplicidade. Eu não sabia dizer não, precisei aprender. Eu tinha tudo para nunca assumir um cargo de gestão, pois você precisa fazer escolhas difíceis”, afirma.
Ela é a única presidente entre clubes profissionais no estado do Ceará. Na Série D, tem a companhia de Luiza Estevão, que preside o Brasiliense, eliminado em setembro da competição nacional. Entre as três principais divisões do país, não há nenhuma mulher no comando. No ano que vem, possivelmente o Palmeiras será presidido pela patrocinadora Leila Pereira.
“Eu estudo muito. Sempre fui pesquisadora de assuntos. Se é para saber de nutrição, vou mergulhar nisso. Outro dia estava alinhando o corte do gramado, sou técnica, sei o que estou falando. Sei o que é praga, erva daninha, grama. Temos que ocupar lugares vacantes, não há glamour em ser presidente”, explica.
A realidade para mulheres ainda é difícil no futebol. Desde Jurema Bagatini Ramos, pioneira ao assumir a presidência de um clube do futebol brasileiro -em 1973, no Esporte Clube Encantado, do interior do Rio Grande do Sul-, são raros os casos.
O Corinthians também teve uma presidente. Marlene Matheus (1936 – 2019) assumiu o clube em 1991, após o marido Vicente Matheus (1908 – 1997) deixar o cargo, e ficou até 1993, quando Alberto Dualib (1919 – 2021) passou o comandar a equipe.
Na elite, o mais lembrado é o de Patrícia Amorim, ex-nadadora, presidente do Flamengo entre 2010 e 2012. Depois de deixar o cargo, ela relatou ter sofrido bastante.
“Tive depressão. Meus filhos liam coisas que não fiz, que não sou. Quem se qualifica para aquela cadeira elétrica sabe que é difícil administrar paixão. Não se aprende na universidade. Nesse período, emagreci quatro ou cinco quilos. Envelheci bastante. Perdi ânimo e alegria”, disse, em entrevista ao Extra, em janeiro de 2017.
Outro caso lembrado é o de Myrian Fortuna no Tupi, equipe de Juiz de Fora, interior de Minas Gerais. Ela esteve à frente do clube sucedendo o irmão, Áureo Carneiro Gomes, em dois triênios: 2014 a 2016 e 2017 a 2019. O ápice foi ter levado a equipe da Série D para a Série B do Brasileiro.
Ela contou que, assim que assumiu, em novembro de 2013, patrocinadores desistiram da parceria com o clube. Além disso, registrou boletins de ocorrências por ameaças de torcedores.
No estado de São Paulo, entre todos os clubes filiados à FPF (Federação Paulista de Futebol) que participaram de competições neste ano, o Tupã é o único presidido por uma mulher. “Não sou uma aventureira”, disse Fabiane Bizo Menezes, em abril de 2019, ao jornal Folha de S.Paulo.
Fabiane está à frente do time desde 2011. Maria comanda o Atlético-CE há menos tempo, mas percebeu rapidamente as dificuldades.
“Quando as pessoas querem magoar as outras, são bem perversas. Deus me deu a condição de estudar um pouco mais, de me recolher e entender, mas já teve dia em que não consegui levantar da cama. Eu digo para as que pensam em entrar nisso: tem que ter coragem”, conclui Maria.
A folha salarial do Atlético é de aproximadamente R$ 100 mil. O time joga neste sábado (23), em Fortaleza, a primeira das semifinais contra o Campinense-PB, pela quarta divisão. Em meio a esses confrontos, ainda começará a disputa da Copa Fares Lopes.
A presidente diz que não traça maiores planos futuros. Cumprirá seu mandato, até 22 de maio de 2022, e só depois disso pensará se continuará de fato no futebol.