Superliga Europeia é marcada por traições e interesses econômicos, revela seriado
O torneio coloca em xeque a continuidade da Liga dos Campeões, principal competição do futebol europeu, e põe uma dúvida nos clubes e dirigentes do mundo todo
Um furacão abalou as estruturas do futebol europeu no ano passado, quando doze clubes anunciaram a criação da Superliga, uma competição independente e restrita, com investimentos de 3 bilhões de euros (R$ 16,8 bilhões). O torneio coloca em xeque a continuidade da Liga dos Campeões, principal competição do futebol europeu, e põe uma dúvida nos clubes e dirigentes do mundo todo: os clubes podem criar seus próprios torneios, sem o apoio das federações e confederações?
Os bastidores, os interesses econômicos nem sempre revelados e até as traições dessa disputa entre a Fifa e a Uefa contra os clubes fundadores do novo torneio formam o enredo da nova série documental “Superliga: A Guerra pelo Futebol”, produzida pelo Apple TV+, canal de streaming da Apple no Brasil. O programa, dividido em quatro episódios, estreia no próximo 13 de janeiro.
O Estadão assistiu ao seriado dirigido Jeff Zimbalist, vencedor do Emmy. É a história ainda não contada de como e porque nasceu a ideia de uma liga independente de clubes. Um dos pontos de partida da série é a amizade entre o esloveno Aleksander Ceferin, presidente da Uefa, e o italiano Andrea Agnelli, ex-presidente da Juventus. Por meio do registro da intimidade dos dirigentes, inclusive de suas relações familiares, e de imagens gravadas durante o congresso da Uefa no ano passado, o seriado mostra o deslocamento das peças no tabuleiro – essa é uma imagem recorrente no documentário – até o momento em que os amigos se tornam rivais. Aleksander considera uma “traição” de Agnelli, que se tornou integrante do grupo responsável pela criação da Superliga, ao lado do presidente do Real Madrid, Florentino Perez, e do presidente do Barcelona, Joan Laporta.
Presidentes das ligas nacionais e dos clubes e aos idealizadores do torneio, jornalistas e estudiosos debatem as duas visões conflitantes em jogo. Os clubes acusam a Uefa de monopólio no mercado pelo controle das competições de futebol. Em sua defesa, a Uefa alegou que protege o lugar especial do esporte na sociedade europeia, que gere competições com uma estrutura aberta a todos e ainda financia o futebol de base.
O plano da Superliga contava com 3,25 bilhões de euros do banco JP Morgan, uma das maiores instituições financeiras do mundo, para distribuir aos participantes em regime de empréstimo. Esse empréstimo seria pago com os rendimentos que a própria competição geraria. “Não é uma ruptura, mas uma evolução. Precisamos de jogos competitivos e mais atrativos entre os grandes times. O Real enfrentou o Chelsea pela primeira vez na Liga dos Campeões apenas no ano passado, depois de tantos anos de disputa”, justifica Florentino Pérez, identificado como arquiteto no documentário.
Representantes da Uefa afirmam que o torneio sufocaria os times pequenos, que não teriam possibilidade de disputar o torneio – a Superliga não previa inicialmente acesso e descenso dos clubes. O ex-atacante Gary Lineker, um dos entrevistados, recorda a trajetória do Leicester City, seu time do coração, que ganhou o Campeonato Inglês em 2015 com uma folha salarial menor do que o salário dos grandes astros do torneio.
Os fundadores não conseguiram prever a reação dos torcedores, que fizeram grandes protestos contra o torneio, principalmente na Inglaterra. Dos 12 clubes fundadores, a maioria recuou. A resposta da Uefa foi contundente diante da proposta: jogadores que disputassem o torneio seriam banidos das competições da Uefa e também da Copa do Mundo.
A discussão afeta não só a Europa, mas as ligas nacionais de todos os países, como explica Eduardo Carlezzo, advogado especializado em Direito Desportivo. “Na presente disputa, a liberdade em jogo é a da livre associação dos clubes e do direito de organizarem suas próprias competições sem a necessidade de autorização federativa. E isso no futebol quer dizer muita coisa. E vale muito dinheiro”, diz o especialista. “Eventual sucesso jurídico desta demanda pode desencadear uma bola de neve em vários continentes. O grande receio dos clubes na constituição de ligas esportivas independentes sempre foi o medo das sanções aplicáveis pelas federações”, completa.
O seriado traça ainda um panorama da história recente do futebol europeu, como a crescente presente de oligarcas e empresários que procuram projetar uma boa imagem de seus países a partir da aquisição do controle dos clubes europeus, como Chelsea e PSG, os efeitos devastadores da pandemia do novo coronavírus no balanço dos clubes.
A realização da Superliga está indefinida. Depois de muitas críticas, a direção da Superliga promoveu mudanças grandes em seus planos. Também pretende envolver mais clubes e um maior número de países, além de criar divisões, com rebaixamento e acesso, para gerar mérito e maior competitividade. No dia 15 de dezembro, o advogado-geral do Tribunal de Justiça da União Europeia, Athanasios Rantos, deu seu parecer e admitiu que as equipes que aderirem à liga poderão receber sanções das entidades, conforme as leis europeias. A decisão não é definitiva. Por outro lado, a Superliga ainda confia na realização de um torneio independente. Um novo parecer deve sair em meados de abril.