Estados Unidos

Amizade de 20 anos com Obama vira trunfo para Kamala na eleição americana

Apoio dela na primária democrata de 2008, dominada por Hillary Clinton, foi risco político que o ex-presidente nunca esqueceu

(Folhapress) Na véspera de Ano-Novo em 2007, Kamala Harris, à época procuradora distrital de São Francisco, se preparava para passar o feriado longe de sua terra natal, a Califórnia. Havia voado para o Iowa pela primeira vez, durante um dos invernos mais chuvosos já registrados.

Kamala apareceu em um escritório de campanha sujo, vestindo casaco fofo e botas. Perto de emaranhado de cabos de energia, alguém havia apoiado um cartaz “Afro-americanos para Obama” contra a parede. Kamala estava lá para bater de porta em porta para Barack Obama, então um senador novato de Illinois que fazia uma candidatura improvável à Presidência.

“Estar aqui vale por 1.000 garrafas de champanhe e fogos de artifício”, disse Kamala a um repórter no dia de Ano-Novo. “É igual a isso, em termos de emoção, excitação e promessa para o amanhã.”

Apoiar Obama foi um risco político. Kamala era uma das raras californianas ocupando um cargo eletivo a endossá-lo à Presidência. A maior parte do peso institucional do partido estava direcionada para Hillary Clinton, senadora de Nova York que tinha um poderoso apoiador, seu marido e ex-presidente Bill Clinton.

Mas a aposta inicial de Kamala deu certo, e Obama nunca se esqueceu disso.

“Ela foi uma apoiadora sólida do presidente em um momento em que todo o establishment político não estava com ele”, disse Buffy Wicks, membro da Assembleia Estadual da Califórnia, contratada pela campanha de Obama. “Ela reservou um tempo significativo e energia para ajudar a elegê-lo, e isso foi algo que ele considerou muito.”

Na terça-feira (20) à noite na convenção democrata, Obama retribuiu o favor, fazendo um discurso no qual trabalhou por pelo menos três meses. Claro, ele ajustou seus comentários nas últimas semanas para se adequar a uma candidata diferente — mas que se alinhou politicamente com ele por duas décadas.

Os dois compartilham uma visão de política que é definida pela oferta de oportunidades econômicas e sociais a pessoas que historicamente foram excluídas delas.

Depois que Obama garantiu a indicação presidencial democrata em junho de 2008 e a Presidência naquele novembro, Kamala surfou em uma onda de manchetes lisonjeiras e comparações favoráveis com o novo líder do partido. Ela declarou sua candidatura a procuradora-geral da Califórnia logo após Obama ser empossado.

Obama considerava-a extremamente inteligente, elogiando suas habilidades políticas e determinação durante sua postulação para ser a principal autoridade policial da Califórnia. Apesar disso, ele era a maior estrela, e seu apoio teve um impacto limitado na campanha dela.

Ele não a endossou até ela vencer a corrida primária, mas os laços já vinham de bem antes. Quando Kamala visitou a Casa Branca, foi recebida “de braços abertos” por Obama, lembrou Wicks, que trabalhou na administração do ex-presidente.

“Eles se conheceram, se deram bem e ao longo dos anos desenvolveram uma amizade muito próxima”, disse Valerie Jarrett, conselheira sênior de Obama quando ele era presidente.

O relacionamento de Kamala e Obama começou em 2004, quando ela organizou uma arrecadação de fundos para sua campanha ao Senado. Eles se conectaram rapidamente devido a suas origens culturais semelhantes em um ambiente político dominado por brancos.

Ambos são americanos de raça mista, nascidos de pais que vieram de diferentes partes do mundo, uma experiência compartilhada que os levou “a acreditar que você pode encontrar algo em comum com praticamente qualquer pessoa.”

Em 2007 e 2008, Kamala, filha de uma cientista indiana e de um professor de economia jamaicano, tornou-se não apenas uma poderosa substituta para as políticas de Obama, mas também uma embaixadora de seu background cultural, explicando as complexidades de sua identidade para eleitores que nunca haviam contemplado um candidato presidencial como ele antes.

“Muitos de nós tendem a simplificar demais rótulos políticos”, disse Kamala em 2007. “Ele é muito mais interessante e complexo do que essas categorias normais.”

Seu estilo de política compartilhado é baseado na ideia de que a ascensão de pessoas com origens raciais e culturais como as deles é um testemunho das forças do país, em vez de uma rejeição de seus valores.

Seu relacionamento foi definido por suas trajetórias políticas mutuamente benéficas, segundo pessoas que os conhecem. Mas Obama aparentemente também enxergou algo mais. Em 2013, ele se viu no centro de uma tempestade midiática por elogiar a aparência física de Kamala em evento de angariação de fundos na Califórnia.

“Você tem que ter cuidado para, em primeiro lugar, dizer que ela é brilhante e dedicada e forte, e é exatamente o que você gostaria em qualquer pessoa que está administrando a lei e garantindo que todos estejam recebendo um tratamento justo”, disse Obama na época. “Ela também é, de longe, a procuradora-geral mais bonita do país.”

Obama não percebeu imediatamente que havia cometido um erro, de acordo com dois ex-assessores da Casa Branca que trabalharam para ele na época. Mas um deles, que falou sob condição de anonimato para descrever a situação delicada que se seguiu, lembrou-se de desejar “que a terra me engolisse inteiro” para evitar perguntas de repórteres depois que Obama fez o comentário.

Obama mais tarde pediu desculpas a Kamala. Ela não expressou qualquer irritação sobre o comentário, de acordo com o ex-assessor da Casa Branca. “Ela deixou claro que ele era um amigo tentando elogiar uma amiga”, disse Gil Durán, que trabalhou como assessor de Kamala quando ela era procuradora-geral.

O episódio não causou nenhum dano real ao relacionamento deles.

Quando o presidente Joe Biden tomou a decisão de encerrar sua campanha de 2024 e informou a vice-presidente, ela teve uma série de ligações para fazer. As primeiras várias foram para membros da família, incluindo Doug Emhoff, seu marido.

Das mais de cem pessoas com quem ela falou, Obama foi o terceiro ou quarto. Ele a aconselhou sobre mensagens políticas e escolha de companheiro de chapa. A campanha dela se concentrou em alegria e liberdade, ecoando a de Obama de 16 anos atrás.

“Os dois são espíritos realmente alegres e otimistas”, disse Jarrett, que voou com Obama de Martha’s Vineyard, Massachusetts, para a convenção em Chicago na segunda-feira (19). “Isso é algo com que nasceram. Isso não mudou ao longo do tempo.”