Brasil quer focar África e América Latina em novo mandato no Conselho de Segurança da ONU
País toma posse como membro não permanente mantendo pleito de reforma da instituição
O ano de 2022 começará com a volta do Brasil ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU). Na próxima terça-feira (4), o país toma posse para um mandato de dois anos como membro não permanente da instituição, com sete metas em foco.
Segundo disse à Folha o embaixador Ronaldo Costa Filho, chefe da missão brasileira na ONU em Nova York, o país planeja usar o assento para debater questões relacionadas à América Latina, com foco em Haiti e Colômbia, e se dedicar à frente de trabalho envolvendo conflitos na África, “em busca de soluções mais ágeis e que ouçam todos os lados envolvidos”.
Em paralelo, o diplomata prevê manter o pleito de reforma do órgão —que há tempos é alvo de questionamentos sobre sua capacidade concreta de ação para a manutenção da paz.
Costa Filho avalia que cerca de 70% do trabalho do Conselho de Segurança hoje já seja dedicado a países africanos. Com a estratégia brasileira, a tendência é de uma aproximação maior a essa região.
O Itamaraty tem embaixadas em ao menos 33 nações na África. Na Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010), a diplomacia brasileira buscou reforçar laços com o chamado Sul global, em um movimento que incluiu a abertura de representações diplomáticas no continente.
Sob Jair Bolsonaro (PL), porém, a prioridade foram as relações com os Estados Unidos —em busca de aliança com o então presidente Donald Trump, que não conseguiu se reeleger— e com países comandados por líderes conservadores, como a Hungria de Viktor Orbán e a Polônia de Andrzej Duda.
Um revés recente da diplomacia na atual gestão, aliás, envolveu justamente uma nação africana: o governo Bolsonaro retirou a indicação de Marcelo Crivella para ser embaixador na África do Sul. A recusa na resposta à solicitação do agrément (consulta formal) se deu em meio a uma crise da Igreja Universal (da qual o ex-prefeito do Rio é bispo licenciado) no continente.
Entre os conflitos africanos que podem chegar ao Conselho de Segurança estão o confronto entre governo e opositores na Etiópia, ataques de um grupo armado na República Democrática do Congo, as consequências de golpes militares no Mali e a reconstrução da Líbia, devastada por uma guerra civil que começou após uma intervenção estrangeira autorizada pela ONU —à época, o Brasil também tinha mandato no órgão e se opôs à ação, mas foi voto vencido.
O Conselho de Segurança é a instância das Nações Unidas com mais poder para agir. Sua principal missão é tentar impedir e encerrar conflitos e evitar que países ameacem uns aos outros. Para isso, pode ordenar operações militares internacionais, aplicar sanções e criar missões de paz, para tentar reorganizar territórios após conflitos ou catástrofes.
O Brasil chefiou uma dessas missões de paz, no Haiti, de 2004 a 2017. Mesmo depois dela o país caribenho continua com problemas graves, que vão da pobreza extrema à violência das gangues, passando por desastres naturais e a instabilidade política —que atingiu seu auge em julho, quando o então presidente Jovenel Moïse foi assassinado a tiros.
Já a Colômbia, outra prioridade do Brasil na América Latina, é vista como melhor exemplo, devido ao acordo de paz com as Farc, que levou guerrilheiros a deixarem o conflito armado —embora ainda haja questões a resolver.
Uma das maiores críticas ao Conselho de Segurança é a seu modelo considerado engessado, que dificulta a adoção de ações mais firmes, especialmente em casos envolvendo grandes potências.
Os membros permanentes —EUA, China, Rússia, Reino Unido e França— podem vetar qualquer medida que os desagrade. Assim, Moscou, por exemplo, consegue impedir punições contra si em relação a suas ações militares envolvendo a Ucrânia.
“O Conselho de Segurança tem se provado completamente ineficaz em conter conflitos, especialmente se envolvem um membro permanente”, diz Dalibor Rohac, especialista em política externa e defesa do think tank American Enterprise Institute. Para ele, a crise entre Moscou e Kiev, em andamento desde a anexação da Crimeia, em 2014, foi uma violação aos compromissos internacionais da própria Rússia.
“Embora haja algum valor em ter um fórum no qual as grandes potências podem fazer barganhas entre si, o Conselho de Segurança é uma instituição ossificada e cada vez mais irrelevante. Essa realidade não mudaria com a inclusão de mais membros temporários.”
O colegiado tem 15 assentos, sendo 5 fixos e 10 rotativos. O Brasil ocupará uma das vagas não permanentes, ao lado de Albânia, Emirados Árabes Unidos, Gabão e Gana. Os outros cinco temporários, cujos mandatos vão até o fim de 2022, são Índia, Irlanda, México, Noruega e Quênia.
Há décadas, o Brasil defende que a saída para melhorar a atuação do Conselho é promover uma reforma que amplie o número de assentos. Mas as chances de mudança a curto prazo são pequenas, pois integrantes fixos não querem ter seu poder diluído e a reforma precisa ser aprovada na Assembleia-Geral, onde votam todos os 193 países-membros da ONU.
Com isso, há temores de que a reforma possa fortalecer rivalidades regionais —o Paquistão, por exemplo, não ficaria feliz se a rival Índia obtivesse uma vaga fixa. Uma saída em debate, para reduzir a resistência à reforma, é a de que novos membros permanentes não tenham poder de veto.
No Conselho, as reuniões ocorrem de duas formas. Há um encontro geral, em que todos os países-membros discursam, sem debates diretos, e outros fechados, em que os diplomatas discutem as questões de forma mais aberta e negociam acordos.
“Esse debate reservado permite liberdade maior na expressão de posições, mas gera uma insatisfação de outros países [de fora do Conselho], que falam em falta de transparência. Me parece, porém, o equilíbrio possível”, analisa o embaixador Costa Filho. “Muitas vezes, a essência da diplomacia é ter um pouco de reserva. Não se negocia pela imprensa.”
Para Daniel Rio Tinto, professor de relações internacionais da FGV, voltar ao colegiado, mesmo sem os privilégios de um assento fixo, será positivo para o Brasil.
“Apesar da disparidade de poder no Conselho, a posição de membro não permanente abre espaço para que um país possa exercer influência nos assuntos da ONU e participar de conversas de alto nível sobre segurança e outros temas caros”, diz. “Cada assunto abordado é uma oportunidade para o Brasil mostrar que pode ajudar a resolver aquele problema e que poderia estar ali fazendo isso de modo permanente.”
Neste mandato, Costa Filho afirma que o governo brasileiro também deve se engajar em ampliar o papel das mulheres e reforçar estratégias para prevenir abusos contra elas em meio a conflitos. “A proposta é, cada vez, mais, inserir as mulheres em todas as etapas do processo, tanto em operações no terreno quanto na mediação e na negociação de soluções.”
Como membro não permanente, o Brasil também se comprometeu publicamente a avançar na defesa dos direitos humanos, a ampliar a articulação com entidades regionais —como a OEA (Organização dos Estados Americanos), a União Africana e a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)— e a reforçar ações para estabilizar países que saíram recentemente de conflitos.
O país defende ainda que temas como o combate à crise climática e a recuperação pós-Covid fiquem de fora da pauta do Conselho de Segurança, onde há só 15 participantes, e sejam debatidos pela Assembleia-Geral.
“A mudança climática tem todo um processo negociador próprio, que inclui as cúpulas do clima. Esse é o processo correto, em que todos os países podem sentar e ter os seus interesses refletidos e considerados”, diz Costa Filho.