Cemitério construído em Buenos Aires devido à febre amarela volta a lotar com Covid
Funcionários do setor ameaçam greve caso governo argentino não ofereça prioridade na vacinação
Em 1871, Buenos Aires viveu uma grave crise sanitária. Acometida pela febre amarela, a capital argentina viu os dois únicos cemitérios da cidade à época transbordarem logo no início da epidemia.
Frente a números de mortes que chegavam a 700 por dia, as autoridades não viram outra solução a não ser abrir, às pressas, um novo cemitério —o da Chacarita, que acabou recebendo a maior parte das 18 mil vítimas da doença. Na época, Buenos Aires tinha não mais do que 180 mil habitantes.
Hoje, 150 anos depois, ampliado e com novos setores destinados apenas aos mortos por coronavírus, o cemitério da Chacarita está outra vez no limite. Os funcionários, filiados ao sindicato de trabalhadores de parques e cemitérios, apresentaram um pedido ao Ministério do Trabalho para serem vacinados o quanto antes, ou então participarão de uma greve nacional e deixarão de recolher corpos e levá-los às sepulturas.
“Fomos classificados de essenciais desde o primeiro momento, porque tínhamos de seguir trabalhando para manter o fluxo dos enterros. Agora, na hora da vacinação, não somos considerados essenciais e vamos para o fim da fila”, diz à Folha Salvador Valente, do Soecra (Sindicato de Trabalhadores e Empregados dos Cemitérios da República Argentina).
“Não é justo, estamos muito mais expostos que a população em geral, somos da linha de frente, como médicos, e já perdemos muitos colegas.”
Um primeiro pedido por prioridade na vacinação e mais equipamentos de proteção, feito em janeiro, foi negado pelo governo. Por isso, os trabalhadores dos cemitérios voltaram a registrar a mesma demanda nesta semana, agora com a ameaça de greve. Embora seja um problema nacional, é na região metropolitana de Buenos Aires, o epicentro da pandemia na Argentina, que a situação é mais grave.
O tradicional cemitério da Recoleta há tempos está lotado e hoje opera mais como um museu a céu aberto, pois deixou de receber novos enterros. Há também um cemitério mais popular no bairro de Flores —outro a abrir um setor exclusivo para mortos por Covid—, que, assim como Chacarita, está saturado.
O da Chacarita é o maior da cidade em funcionamento e um dos mais emblemáticos da capital argentina. Ali estão enterrados o ídolo do tango Carlos Gardel, o escritor Roberto Arlt, o artista plástico Antonio Berni e o compositor Enrique Santos Discépolo, entre outras celebridades.
O cemitério também abrigou por muitos anos o corpo de Juan Domingo Perón, até sua sepultura ser atacada, e as mãos do ex-presidente, arrancadas e roubadas, em 1987. A razão do crime e o paradeiro das mãos de Perón permanecem desconhecidos, em mais uma história misteriosa da política local.
“Chacarita é um patrimônio argentino. É o cemitério que guarda os ícones da cultura popular, jogadores de futebol, tangueiros, atores, além de Perón até certo momento [após o sequestro das mãos, o resto do corpo foi levado a uma propriedade particular da família]”, diz à Folha o historiador Felipe Pigna. “Enquanto o cemitério da Recoleta é o da elite aristocrática do século 19, o de Chacarita é o da cultura popular.”
Para o pesquisador, é importante preservar o cemitério tanto como local em funcionamento quanto como memória dos portenhos. “Por mais que a pandemia atual esteja causando grande sofrimento à cidade, temos de lembrar o pesadelo que foi a febre amarela e o modo como a população ficou amedrontada. Naquela época não se sabia que a doença era transmitida por um mosquito. Houve uma crise política importante e até o presidente [Domingo Faustino] Sarmiento abandonou a cidade”, lembra Pigna. “Buenos Aires ficou a cargo de uma comissão de notáveis, médicos, políticos, que também foram morrendo.”
O historiador lembra que, naquela época, também circulava pela cidade o chamado “trem da morte”, uma locomotiva de um vagão que cruzava a capital argentina recolhendo mortos nas casas.