Com pé no Brasil, lobby antiaborto dos EUA gastou R$ 1,6 bi pelo mundo
Entidades cristãs dos EUA, muitas delas ligadas ao governo de Donald Trump, destinaram mais de…
Entidades cristãs dos EUA, muitas delas ligadas ao governo de Donald Trump, destinaram mais de US$ 280 milhões (R$ 1,6 bilhão) para fomentar uma ofensiva global com o objetivo de defender uma agenda antiaborto, contra direitos reprodutivos e contra os interesses dos grupos LGBTI.
Algumas das instituições com os maiores investimentos mantém relações com a ministra Damares Alves. Questionado, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não respondeu até o fechamento desta reportagem, mas confirmou ter recebido as perguntas da coluna.
Os dados foram revelados pela entidade OpenDemocracy, que avaliou 28 instituições, milhares de documentos e seus registros financeiros desde 2007. Apenas na América Latina, o volume de dinheiro chegaria a US$ 45 milhões em uma década.
Algumas dessas entidades se relacionam com Damares Alves, antes mesmo de a ministra assumir a pasta. Em uma viagem aos EUA em 2019, Damares visitou duas das organizações que aparecem na pesquisa como sendo as mais ativas nos investimentos no mundo.
De acordo com a OpenDemocracy, elas são Heritage Foundation, que destinou US$ 3,3 milhões em operações pelo mundo, e a Alliance Defending Freedom (ADF), com US$ 21 milhões. Só na América Latina, a ADF destinou quase US$ 1 milhão. A pesquisa não revela de que maneira o dinheiro foi usado em cada país e para onde os recursos foram destinados.
O dinheiro, porém, foi usado para “influenciar leis, políticas e a opinião pública estrangeiras a fim de “provocar uma reação negativa contra os direitos sexuais e reprodutivos”. Essas ações, amplificadas sob a alcunha de “pró-família” e “pró-vida”, agem principalmente em três grandes grupos: antiaborto e pelo endurecimento da ação punitiva do aborto, aquelas contra as demandas LGBT e aquelas contra gênero ou “ideologia de gênero”.
“Nas últimas legislaturas do Congresso Nacional, o ativismo de evangélicos contra tais agendas colocou as questões sexuais e a pauta identitária como elementos centrais do debate público”, diz Dirceu André Gerardi, pós-doutorando em Sociologia pela USP, membro do grupo de pesquisa religião, direito e secularismo, vinculado ao Cebrap.
“Isso fortaleceu o ativismo de evangélicos conservadores contra políticas públicas de direitos humanos, a ponto da aliança com o governo Bolsonaro se caracterizar como a principal base social e eleitoral da direita cristã no Brasil”, afirma o pesquisador, que investiga a atuação de parlamentares evangélicos na arena pública brasileira, sobretudo no Congresso Nacional.
Outra entidade citada no levantamento é a Family Watch International. Em 2019, Angela Vidal Gandra da Silva Martins, secretária no ministério de Damares Alves, foi convidada para participar de Fórum Mundial da organização, para discursar sobre a necessidade de proteger a família.
American Center For Law and Justice é outro destaque na pesquisa. No Brasil, um dos seus integrantes, Jordan Sekulow, teria falado para mais de 2000 pastores da igreja Associação Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia, e foi recebido pelo então vice-presidente Michel Temer.
Doações sem transparência
De acordo com a OpenDemocracy, os grupos não revelaram a origem do dinheiro ou como ele seria gasto. Mas a pesquisa identificou que cada um desses grupos americanos examinados está registado como um grupo isento de impostos e classificado como “sem fins lucrativos”.
Nos EUA, porém, isso significa que as entidades estão impedidas de participar em atividades político-partidárias. Mas os dados revelam que o Centro Americano para o Direito e Justiça, por exemplo, apoiou publicamente Amy Coney Barrett, nomeada esta semana para o Supremo Tribunal. A entidade é ainda liderada por um dos advogados pessoais de Trump, Jay Sekulow.
Na América Latina, a pesquisa revela investimentos pesados. A Billy Graham Evangelistic Association, por exemplo, destinou US$ 21 milhões para ações na região, contra US$ 6 milhões pela Focus on the Family. A Fellowship Foundation investiu outros US$ 3,7 milhões, enquanto a American Society for the Defense of Tradition, Family and Property destinou US$ 2,6 milhões.
No ano passado, a OpenDemocracy descobriu como uma dúzia de grupos “fundamentalistas” da direita cristã dos EUA, muitos com ligações à administração Trump e a Steve Bannon, tinham derramado pelo menos 50 milhões de dólares na Europa ao longo de uma década. Agora, a descoberta é que o volume é ainda maior, de US$ 90 milhões.
Intercâmbio, reuniões e visitas
O governo brasileiro tem mantido contato com uma dessas entidades, a Alliance Defending Freedom (ADF International).
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no mês passado, confirmou à coluna que “interage” com a organização americana. “Os princípios compartilhados com a ADF, em geral, referem-se à defesa dos valores humanos”, respondeu o ministério sobre a entidade nos Estados Unidos (EUA). Mas em seu site, a entidade americana chega a alertar para a existência de uma “indústria inteira que lucra com cada criança morta no útero”. Um dos apelos do grupo é para que a sociedade “reconheça a dignidade humana dos bebês não nascidos” e que “proteção legal” deveria ser garantida a eles.
“O aborto legal não protege as mulheres. O aborto certamente mata os bebês no útero, mas também pode levar à lesão ou à morte da mãe. A Alliance Defending Freedom tem auxiliado os advogados aliados no litígio de vários desses casos e continuará a proteger o bem-estar físico tanto da mãe quanto do filho”, argumenta a ADF.
O Brasil passou a tentar vetar artigos em resoluções que pudessem ser interpretadas como uma brecha para o reconhecimento do aborto como uma opção legal, referências à saúde sexual e direitos reprodutivos. Agiu ainda para tentar incluir a referência ao papel das entidades religiosas na defesa dos direitos das mulheres.
Na semana passada, o Brasil ainda foi um dos co-patrocinadores de uma aliança liderada pelos EUA para barrar qualquer referência à educação sexual ou abrir brechas para o aborto legal na agenda da ONU.
Ainda em 2019, o Brasil decidiu participar de um evento patrocinado na ONU, em Genebra (Suíça), pela ADF International. O tema: a liberdade religiosa. O governo aproveitou o evento para denunciar a suposta perseguição contra cristãos.
Representantes da mesma organização têm feito parte de reuniões entre a pasta de Direitos Humanos e o Itamaraty. No dia 22 de maio de 2020, por exemplo, um encontro ocorreu envolvendo deputados brasileiros, representantes do Itamaraty, do Ministério de Direitos Humanos e Tomás Henriquez, da ADF Chile.
A lógica no Brasil é a mesma que nos Estados Unidos: entidades associadas à direita cristã —aqui as pentecostais como Assembleia de Deus e Igreja Universal— selecionam e apoiam, com a estrutura da igreja, candidatos a deputado pelo país. “Eles representam boa parte dos interesses dessas igrejas. Elas atuam como partidos políticos”, explica o pesquisador Dirceu André Gerardi. “Realizam barganhas com candidatos ao Executivo, negociam cargos no Legislativo e trocam apoio por ministérios.”
Nos EUA, ADF é acusada de ser grupo de ódio
Em 2017, o senador americano Al Franken já afirmava que a ADF seria um “grupo de ódio”. Ele se referia a uma classificação anunciada pela entidade Southern Poverty Law Center (SPLC), que tem focado seus esforços em mapear grupos de ódio nos EUA, além de combater o racismo e as injustiças. Seus especialistas se concentram no monitoramento de grupos extremistas.
A SPLC explicou que tal classificação foi estabelecida diante da postura da ADF contra grupos LGBT. “A ADF difunde mentiras sobre a comunidade LGBT”, diz o Southern Poverty Law Center.
“Por exemplo, vinculou o fato de ser LGBTQ+ à pedofilia e alegou que uma “agenda homossexual” irá destruir a sociedade”, explicou o SPLC. “A ADF tenta expressar sua retórica em frases benignas, mas a verdade é que ela trabalha para desumanizar as pessoas LGBTQ+ e restringir seus direitos de serem quem são”, alerta.
A ADF, porém, rejeita ser classificado como “grupo de ódio”, nega qualquer tipo de extremismo e questiona a credibilidade da SPLC. Para ele, trata-se de “organização politicamente partidária e voltada para a captação de recursos”.
Damares também rejeita tal acusação. “Até o momento, nas interações com a ADF, não identificamos nenhum posicionamento radical ou desrespeitoso para com qualquer segmento social. Por outro lado, o que visamos efetivamente, não é o ódio, mas o fortalecimento de vínculos familiares, cidadãos, sociais e internacionais com um profundo respeito ao pluralismo”, completou o governo brasileiro, em setembro.
No começo de outubro, o ministério de Damares ampliou seu escopo de influência ideológica. A nova frente ultraconservadora começa a se dar agora no âmbito acadêmico: o MDH anunciou a oferta de 50 bolsas de mestrado e pós-doutorado para pesquisas sobre “família”.
“É um momento histórico, é a primeira vez que temos políticas públicas familiares”, disse a secretária nacional da família, Angela Gandra, desconsiderando outros direitos como parte do que é o contexto familiar. Segundo ela, iniciativas de “fortalecimento de vínculos familiares é algo inédito”, como se direitos das mulheres, da população LGBTI, da população negra e da infância não fizessem parte do que ela considera “família”.
Entidade brasileira com presença de Damares acompanha ADF pelo menos desde 2012
Anos antes, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos estabeleceu um acordo com a ADF. A associação brasileira tinha, como membro em 2012 e 2013, a advogada e pastora Damares Alves.
Em um comunicado que anunciava o projeto, chamado de Blackstone Legal Fellowship, a associação indicou que a parceria tinha como objetivo “enviar estudantes evangélicos brasileiros que cursam direito para fazer um estágio intensivo nos EUA”.
De acordo com a OpenDemocracy, a ADF foi ao Supremo Tribunal dos EUA no ano passado para defender o sigilo dos doadores sem fins lucrativos. “Os seus poucos financiadores conhecidos incluem as fundações familiares da secretária da educação da Trump, Betsy DeVos”, indicou.
Influência
No restante do mundo, a ação dessas entidades também é constante. A ACLJ atuou na Corte Europeia de Direitos Humanos para defender uma posição contra o casamento gay. Também houve uma atuação dos advogados do grupo para defender as políticas ultraconservadoras da Polônia contra o divórcio e o aborto.
Na equipe de defesa de Trump durante o impeachment, alguns dos advogados eram da mesma entidade, a ACLJ, que gastou em uma década US$ 17 milhões em ações fora do país.
Segundo a pesquisa, vários destes grupos de direitos cristãos americanos também foram ligados à desinformação da COVID-19. O PRI, por exemplo, é dirigido por um ativista ultra-conservador que afirma que o coronavírus foi feito pelo homem num laboratório chinês, e também faz parte de um grupo de lobby anti-China com Steve Bannon.
Outro grupo, Family Watch International (FWI), tem vindo a formar há anos políticos africanos, líderes religiosos e da sociedade civil para se oporem à educação sexual abrangente e aos direitos LGBT em todo o continente africano.