Condenação de grupo por abuso sexual causa revolta na Espanha
Em Pamplona, no norte do país, onde se consumou o ato, mais de 30 mil foram às ruas no sábado (28) para protestar contra a decisão da Justiça.
Eles se chamavam de “manada” em seu grupinho de Whatsapp, onde trocavam mensagens se gabando de suas relações sexuais. Comentavam inclusive aquela noite de festa de 2016 em que eles eram cinco homens e apenas uma mulher, contra a vontade dela. “Hehehe, tudo o que eu conte será pouco”, disse um membro a quem não estava ali. “Tem vídeo”. “Malditos, que inveja de vocês.”
A tal manada foi condenada na quinta-feira (26) na Espanha pelo crime de abuso sexual, pelo qual cada um cumprirá nove anos de prisão. A sentença, no entanto, não interrompeu a indignação popular, entre as multidões que foram às ruas dizer que esse grupo deveria ter sido punido por outro crime, o de estupro, mais grave -e que pressupõe violência.
Em Pamplona, no norte do país, onde se consumou o ato, mais de 30 mil foram às ruas no sábado (28) para protestar contra a decisão da Justiça.
A sentença e a reação levantaram um vivo debate no país sobre a adequação de suas leis de abuso sexual e de estupro, sobre se seus juízes respondem à sensibilidade pública -e sobre se cabe pressão nas ruas para que um tribunal determine a pena dos réus (alguns dos quais já tinham sido condenados por roubo e por dirigir embriagados).
Associações de juízes criticaram os protestos e pediram o apoio dos cidadãos aos tribunais. Já o governo conservador do premiê Mariano Rajoy, do Partido Popular, anunciou que pedirá a revisão dos delitos sexuais descritos no Código Penal espanhol, que remonta a 1995.
A oposição lhe apoiará, disse à reportagem Adriana Lastra, vice-secretária-geral do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol). “Pedimos que o texto seja revisto para que já não esteja tão aberto à interpretação dos juízes, influenciados pelo machismo que permeia toda a sociedade espanhola”, afirma. “O que aconteceu foi um estupro selvagem, múltiplo e feito em manada.”
Os cinco amigos da manada participavam em 2016 das festas de San Fermín, em Pamplona, onde são realizadas as tradicionais corridas de um touro investindo em ruelas contra a população. Segundo a sentença, em torno de seus 30 anos, eles prometeram a uma jovem alcoolizada de 18 que a levariam embora.
Em vez disso, foram a um prédio com apenas uma saída, retiraram toda a roupa dela e lhe penetraram por via oral, vaginal e anal. Gravaram a cena, roubaram seu celular e foram embora. A garota foi encontrada no dia seguinte. Atônita, sentada em um banquinho.
A defesa da manada diz que a relação foi consensual, o que a vítima nega. A procuradoria pedia 22 anos de prisão, a prefeitura de Pamplona pedia 25 e, enquanto a população acompanhava o caso e a imprensa já parecia ter condenado os cinco jovens, veio a sentença de nove anos. Insuficiente para os manifestantes da semana passada, carregando cartazes de “foi estupro, e não abuso sexual”.
Os juízes determinaram que, apesar de não ter sido de comum acordo, o ato não envolveu violência ou intimidação -daí a escolha pelo crime de abuso, em vez do de estupro. Na Espanha, só se considera estupro se houver prova de violência ou de intimidação.
Segundo o Código Penal espanhol, as penas de abuso vão de quatro a dez anos se há penetração. Para o estupro, as penas vão de seis a doze anos quando existe a penetração.
No Brasil, vale a mesma regra: o crime hediondo do estupro é descrito como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal”. As penas, nesse caso, vão de seis a dez anos -podem aumentar se houver lesão corporal ou morte.
“Se o que a manada fez não foi violência contra uma mulher indefesa, então o que entendemos que é um estupro?”, disse Pedro Sánchez, líder do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), um dos políticos que se manifestaram contra a sentença. Personalidades culturais também protestaram, incluindo o ator Antonio Banderas. Ana Botín, presidente do banco Santander, igualmente criticou os juízes.
Uma das peças de evidência exibidas no tribunal foi o vídeo mencionado pela manada em suas conversas de Whatsapp, de 96 segundos, em que a garota aparece imóvel durante o ato sexual. A imagem foi citada como prova de que a vítima não resistiu -mas os advogados dela dizem que a imobilidade era o resultado do choque.
Agravando a fúria popular, um dos juízes, Ricardo Javier González, votou pela absolvição dos jovens. Ele disse não haver, no vídeo, nenhum indício de “oposição, rejeição, dor, repugnância” na vítima. “O que você fez para que soubessem que você estava em estado de choque”, o juiz perguntou a ela no julgamento. “Eu fechei os olhos. Não falava, não estava fazendo nada. Estava de olhos fechados.”
Nesta segunda-feira (30), o ministro espanhol da Justiça, Rafael Catalá, criticou o juiz González dizendo que “todo o mundo sabe que ele tem um problema”. O ministro não explicou a que se referia, mas sugeriu que o juiz deveria ter sido impedido de exercer a função.
O caso da manada causou indignação em parte por recordar o público espanhol de tantas outras histórias de violência sexual sem resolução. As próprias festas de San Fermín são conhecidas por agressões, com entre cinco e dez denúncias feitas a cada ano, quando se acredita que o número de casos seja mais alto.
Nos últimos anos, a prefeitura de Pamplona organizou uma série de campanhas de conscientização e de combate à violência sexual. A polícia instalou câmeras de segurança para monitorar essas festas.
“Dizem que a vítima não reagiu. O que aconteceu é que, dobrada diante da vontade de cinco homens, ela escolheu sobreviver”, afirma Lastra, a vice-secretária do PSOE.
Segundo um levantamento recente, 1,5 milhão de mulheres -em uma população de 45 milhões de espanhóis -dizem ter sofrido violência sexual fora de suas relações. “Esta sentença deixou todas elas desamparadas”, disse Lastra.