GUERRA FRIA

EUA e China trocam sanções e chegam ao pior ponto da relação

Disputas de territoriais, tecnológicas e militares entre as duas superpotências apontam para surgimento de nova ordem geopolítica

Trump e Xi Jinping (Foto: Arquivo/Divulgação)

Um a um, os Estados Unidos vêm atacando os pilares da visão de Xi Jinping de uma China ascendente, pronta para vestir a faixa de superpotência global. Em questão de semanas, o governo de Donald Trump impôs sanções em resposta às punitivas políticas chinesas para Hong Kong e a província de Xinjiang e restringiu o acesso chinês a tecnologias americanas. Na segunda-feira, Washington considerou as reivindicações territoriais de Pequim no Mar do Sul da China “ilegais”, abrindo caminho para um confronto mais acentuado entre os dois países.

Há anos, historiadores rejeitam a ideia de uma nova guerra fria entre EUA e China. Para eles, o mundo estaria conectado demais para ser dividido em dois blocos, algo bastante diferente de quando americanos e soviéticos disputavam a supremacia planetária. Agora, no entanto, o esfacelamento da relação sino-americana prepara o terreno para um confronto que poderá ter muitas das características da disputa entre Moscou e Washington, inclusive seus perigos.

— A lacuna de poder está diminuindo, e a lacuna ideológica vem aumentando — disse Rush Doshi, diretor da Iniciativa de Estratégica Chinesa da Brookings Institution, um centro de estudos de Washington, afirmando que Pequim e Washington ingressaram em uma “espiral ideológica” que vinha sendo formada há anos. — Onde será o fim? — indagou.

Sob estas circunstâncias, até mesmo pequenas querelas correm o risco de se transformar em conflitos militares. O relacionamento é cada vez mais imbuído de desconfiança e hostilidade, especialmente onde seus interesses colidem: nos espaços cibernético e sideral, no Estreito de Taiwan, no Mar do Sul da China e até mesmo no Golfo Pérsico, onde Irã e China preparam um acordo de parceria comercial e militar. O acirramento dessas fissuras pode ser difícil de superar, independentemente do resultado das eleições americanas de novembro.

Pela perspectiva de Pequim, foram os americanos que levaram as relações bilaterais ao seu pior nível desde 1979, quando elas foram retomadas dentro da estratégia americana de explorar as divisões que existiam no então bloco comunista. Na semana passada, o chanceler Wang Yi disse que a política americana é baseada “em cálculos estratégicos mal informados e formulados” e em “caprichos e fanatismo macarthista”, referindo-se à caça às bruxas anticomunista liderada pelo senador Joseph McCarthy nos anos 1950.

— É como se todo investimento chinês fosse politicamente motivado, como se todo estudante chinês fosse um espião e como se toda iniciativa de cooperação tivesse segundas intenções — disse Wang.

Pandemia

Em meio ao acirramento ideológico das políticas internas em ambos os países, a pandemia também inflama as tensões, especialmente nos EUA. O presidente Donald Trump se refere ao coronavírus com retórica racista, algo que Pequim afirma ser uma tentativa de desviar o foco da extensão da crise sanitária em solo americano.

Ambos os países também forçam outras nações a se posicionarem. Os EUA pressionam seus parceiros para impedir que a Huawei participe da construção de suas rede 5G — iniciativa bem-sucedida com a Austrália e, nesta terça, com o Reino Unido.

Pequim, por sua vez, criticada por sua postura em Hong Kong e Xinjiang, busca aliados que a apoiem publicamente. No Conselho de Direitos Humanos da ONU, 53 países assinaram uma declaração apoiando a nova Lei de Segurança Nacional de Hong Kong. As 27 nações que criticaram a medida, eram, em sua maioria, europeias ou aliadas americanas.

A China também transformando seu vasto poderio econômico em ferramenta de coerção política, cortando as importações de carne e cevada da Austrália, que defendeu uma investigação sobre as origens da pandemia. Nesta terça, Pequim anunciou sanções à Lockheed Martin, empresa fabricante de produtos aeroespaciais, em resposta à venda recente de armas para Taiwan.

Disputas territoriais

Com o planeta distraído pela pandemia, o país asiático vem também testando seu poder militar, como na disputa fronteiriça entre a Índia nos Himalaias, que causou as primeiras mortes em conflito na região desde 1975. Semanas depois, fez uma nova reivindicação territorial no Butão, reino aliado a Délhi, sinal de que os chineses estão dispostos a aceitar os riscos de suas medidas.

Com ameaças chinesas a navios do Vietnã, da Malásia e da Indonésia no Mar do Sul da China, os americanos deslocaram dois porta-aviões para a região no mês passado, em uma demonstração de força. Ações similares são consideradas inevitáveis após o Departamento de Estado dos EUA reverter sua posição sobre as reivindicações chinesas na região.

Para o porta-voz da Chancelaria chinesa, a ação americana põe em risco a paz e a estabilidade regional, já que Pequim controla as disputadas ilhas há “milhares de anos”, o que não é verdade. A primeira reivindicação formal chinesa data de 1948, feita pela então República da China de Chiang Kai-shek.

Vizinhos veem a situação com outros olhos. Nesta semana, o Japão alertou que a China está tentando “alterar o status quo no Mar da China Oriental e no Mar do Sul da China”, chamando-a de uma ameaça em longo prazo mais séria que a Coreia do Norte. Para o ex-embaixador americano na Rússia, Michael McFaul, o comportamento de Xi lembra Nikita Khruschev, ex-líder soviético:

— Ele está atacando e, de repente, está numa crise dos mísseis em Cuba com os EUA — disse o diplomata, citando outro momento da Guerra Fria.

Disputa tecnológica

O repúdio a Pequim parece crescer, especialmente no campo tecnológico, onde compete com inovações como inteligência artificial e microchips, mesmo em meio à forte censura em seu território, impedindo o acesso a conteúdos críticos ao regime. Em seu discurso, Wang disse que Pequim nunca buscou impor sua conduta a outros países, apesar de recentemente ter feito o Zoom censurar conferências realizadas nos EUA e ter lançado ciberataques contra uigures pelo mundo.

Após a disputa fronteiriça com Délhi, a Índia bloqueou 58 aplicativos chineses, inclusive o maior deles, o popular TikTok, que permite a gravação de vídeos curtos. Na semana passada, o software parou de funcionar em Hong Kong, depois que os EUA ameaçaram proibi-lo em seu território. O Facebook, o Google e o Twitter também anunciaram que não fornecerão mais dados sobre usuários solicitados pelo governo da cidade chinesa semiautônoma.

Cortar abruptamente a utilização de produtos chineses por companhias tecnológicas americanas não é realista em curto prazo e teria alto custo a longo prazo. Ainda assim, Washington trabalha para ceifá-los, aproximando-se da indústria de microchips de Taiwan, crucial para as linhas de produção da Huawei. Há planos para construir uma indústria no Arizona.

“Não é difícil ver que, sob o impacto do coronavírus nas eleições americanas deste ano, vários poderes dos Estados Unidos estão focados na China”, escreveu em um artigo recente o professor Zhao Kejin, da Universidade Tshinghua, em Pequim. “As relações sino-americanas enfrentam seu momento mais sério desde o restabelecimento das relações diplomáticas”.