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Europa tenta conter segunda onda da covid-19 sem impor quarentenas nacionais

A Europa se vê diante de um cenário “alarmante”, segundo a Organização Mundial da Saúde…

A Europa se vê diante de um cenário “alarmante”, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS): o continente hoje registra mais casos de Covid-19 que em março e abril, nos piores momentos da pandemia. De Leste a Oeste, países endurecem suas restrições para tentar conter o vírus, buscando evitar a imposição de novas quarentenas nacionais.

A Espanha registrou, na sexta-feira, inéditas 11,2 mil infecções, enquanto na França, os casos diários se aproximaram de 10,6 mil. Restrições foram reimpostas em ambos os países, assim como no Reino Unido — na Inglaterra, os novos diagnósticos praticamente dobraram em uma semana. Países da Europa Central e Oriental, menos afetados na primeira onda, agora também veem um aumento exponencial das infecções.

Os motivos para a aceleração atual são diversos, mas vinculam-se à retomada das atividades após o fim dos lockdowns, entre maio e junho — que, para especialistas ouvidos pelo GLOBO, foi demasiadamente rápida. Como o vírus nunca deixou de circular, bastou um relaxamento para que as taxas de infecção voltassem a crescer.

O cenário atual é inegavelmente grave, mas diferente do que ocorria há seis meses. Comparações numéricas, por si só, demandam cautela: hoje aplicam-se mais muito testes que no ápice da pandemia, quando faltava equipamentos e os hospitais estavam sobrecarregados. Logo, é esperado que haja mais diagnósticos.

O número de óbitos e internações, por sua vez, cresce em ritmo mais lento que no início do ano. Segundo especialistas, as mutações do vírus não são significativas para causarem uma queda na sua letalidade, mas há outras explicações para o fenômeno, como a idade das vítimas. Atualmente, o contágio se concentra nas faixas etárias jovens, menos suscetíveis a complicações, enquanto os idosos vêm se mantendo mais resguardados.

— Um outro fator é que estamos melhorando muito no tratamento da doença. Inicialmente, achávamos que era como uma pneumonia viral clássica, não entendíamos seus efeitos pelo corpo — disse Martin McKee, professor de saúde pública na prestigiosa Escola de Medicina Tropical e Higiene de Londres. — Agora, os pacientes estão recebendo anticoagulantes, esteróides, estão tendo melhor tratamento hospitalar, não são postos em respiradores cedo demais.

‘Segunda onda’

McKee afirma que há uma ressurgência evidente da doença, mas hesita em falar de uma “segunda onda”. Ele explica que o termo foi originalmente criado para se referir à Gripe Espanhola, que se manifestou sazonalmente entre 1918 e 1920. A influenza virtualmente desaparecia nos meses mais quentes, mas retornava com força com a queda da temperatura.

Segundo o professor Daniel López Codina, do grupo de pesquisa de biologia computacional da Universidade Politécnica da Catalunha, parte da população acreditou no discurso de que o vírus perderia intensidade com o verão. Isso, ele crê, teve influência para um relaxamento excessivo, que impulsionou os contágios.

— Usávamos justamente o exemplo do Brasil. Nos estados tropicais, a temperatura é muita alta e mesmo assim a epidemia tem sido duríssima. Estava claro que o calor não significaria um freio das transmissões — disse o professor.

Apesar de eficiente para reduzir a taxa de infecção e o número de mortes, o confinamento coletivo causou a maior crise econômica no continente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Pela Europa, governos recorrem a medidas locais, direcionadas, e à campanhas de conscientização sobre a necessidade de se respeitar as diretrizes sanitárias. Buscam, a todo custo, evitar um novo lockdown.

Entre eles, a Espanha é a mais afetada pela ressurgência do coronavírus, cuja taxa de contágio varia entre as regiões do país. Em Madri, um dos pólos de transmissão, cerca de 855 mil pessoas só poderão sair de casa para trabalhar ou ir à escola, e reuniões serão limitadas a grupos de seis pessoas a partir de segunda-feira. No início de julho, o país chegou a registar menos de 300 casos diários de Covid-19. Na última sexta, foram mais de 11 mil.

O grupo de López Codina realizou um estudo sobre o aumento dos diagnósticos no país ibérico, identificando três fatores-chave. O primeiro deles foi um levantamento precoce do confinamento, que deveria ter sido mantido por mais duas semanas, até julho. O tempo adicional, diz o professor, provavelmente teria diminuído ainda mais a incidência do Sars-CoV-2. As outras duas causas englobam o relaxamento excessivo com a chegada do verão e a ineficiência do sistema de vigilância epidemiológica.

O caso italiano

O sucesso do rastreio e da contenção de casos, contudo, é uma das explicações pela qual a Itália está hoje em uma situação melhor que diversos de seus vizinhos. No início do ano, o Norte do país, em especial a Lombardia e a Emília-Romanha, foi epicentro global da pandemia, mas o vírus não se espalhou com tanta força pelo resto da Península Itálica. Isso, para McKee, pode ser associado ao forte sistema de saúde público local.

— A diferença da Itália para alguns outros países é que, quando os casos ocorrem, há epidemiologistas a postos para caçá-los, como na Coreia do Sul. A Espanha, a França e o Reino Unido não conseguem fazer isso com a mesma eficiência — disse o médico.

Em território britânico, onde o número de internações dobra a cada oito dias, o governo já considera uma segunda onda inevitável. O plano do premier Boris Johnson é testar 10 milhões de pessoas por dia até o início de 2021, mas tem dificuldades para lidar com sua carga atual, 40 vezes menor. Hoje, a saturação é tanta que amostras são enviadas para laboratórios no exterior.

A partir de terça, novas restrições serão aplicadas em áreas do Centro e do Norte da Inglaterra e na Irlanda do Norte. Um lockdown nacional, segundo o ministro da Saúde, Matt Hancock, é a opção derradeira para o país, que registra mais de 41 mil mortes por Covid-19, o maior número do continente, e 388 mil casos.

Na França, apesar do aumento significativo dos diagnósticos, o número de óbitos diários está ao redor de 30 — em seu ápice, passava de mil. Ainda assim, reuniões com mais de 10 pessoas foram banidas em Nice, e o funcionamento dos bares foi restrito. Restrições similares foram adotadas em Marselha e Bordeaux. À beira-mar ou próximas da costa, as três cidades são populares destinos de viagem.

‘Caçar unicórnios’

O turismo dentro da Europa, apesar apenas uma fração do habitual, também parece ter contribuído para o fortalecimento da doença. Regiões populares que não haviam sido atingidas com tanta força na primeira onda, como as Ilhas Baleares, hoje lidam com uma situação mais aguda. Na Itália, em agosto, cerca de 30% dos novos casos foram contraídos no exterior. Para McKee, no entanto, seria um equívoco singularizar uma única razão para o aumento dos contágios:

— Há muitas coisas acontecendo, e é importante entender que se trata de um fenômeno muito local. Em alguns lugares, são casas com famílias multigeracionais, com três gerações sob um mesmo teto. Em outros, são bares, boates e restaurantes — afirmou. — Em outros lugares, como na Coreia do Sul e nos Estados Unidos, são igrejas. Na Espanha, houve também a migração sazonal

A OMS teme que a situação saia do controle com a queda das temperaturas, quando as pessoas começarão a passar mais tempos em ambientes fechados, com circulação limitada de ar. Segundo seu diretor de emergências, Michael Ryan, os países precisam parar de “caçar unicórnios” e tomar decisões para proteger os mais vulneráveis e manter as escolas abertas.

— Como conciliamos esses dois princípios: proteger os vulneráveis da morte e deixar nossas crianças retornarem à escola? — indagou, em entrevista coletiva. — O único jeito de fazê-lo é com os adultos mantendo-se suficientemente separados para reduzir o contágio (…). O que é mais importante: que nossas crianças voltem às aulas ou que os bares e boates continuem abertos?