REDES SOCIAIS

Filtros nas redes sociais causam obsessão pela simetria facial

Apesar dos efeitos serem algo recente, a busca pela beleza quase sempre passou pela ordem e a semelhança

Apostas eletrônicas viraram mania no Brasil (Foto: Pixabay)

Os espelhos mentem. Eles invertem as coisas. O rosto que você vê toda manhã no espelho do banheiro ou do seu pó compacto: esse é seu “eu oposto” –o inverso do rosto que todas as outras pessoas veem. Todos sabemos disso, na teoria.

No entanto, nos últimos dois anos esse fato simples vem fascinando e em alguns casos incomodando profundamente muitas pessoas (especialmente jovens) que experimentam os filtros de simetria facial nas plataformas sociais.

Alguns desses filtros invertem o reflexo do espelho, revelando imagens do rosto da pessoa como outras pessoas o veem. Isso perturba muitos usuários, pois lança uma nova luz sobre todas as imperfeições que de tão acostumados já estavam indiferentes, ou mesmo que já haviam deixado de perceber: pode ser uma linha de cabelo irregular, uma boca torta, ou os olhos não perfeitamente alinhados no mesmo nível.

Tudo isso entra em foco nítido quando há uma inversão. Por esses motivos, ver-se diante do próprio rosto “invertido” pode ser um pouco perturbador (algo semelhante ao que você pode sentir quando ouve sua própria voz numa gravação em áudio).

Outros filtros nos espantam de maneiras diferentes, criando simetria, alinhando feições e dissolvendo irregularidades, ou então apresentando imagens aperfeiçoadas, mas profundamente não familiares, através de uma espécie de uma “photoshoppagem” em tempo real ou plástica virtual.

Os filtros ganharam popularidade enorme. Parece que a cada poucos meses uma nova tendência ligada à simetria facial toma conta do TikTok, ao som de músicas (como “Deja Vu”, de Olivia Rodrigo) ou filmes.

Vasculhe as páginas e mais páginas de usuários que experimentam esses filtros e você verá reações de vários tipos. Algumas pessoas gargalham ao ver o que parece ser um reflexo deturpado, de parque de diversões; outras parecem sentir choque e desespero reais quando se defrontam com o rosto que não reconhecem como seu na tela de seu celular.

Filtros do Tik Tok

Um efeito de simetria muito usado, citado no aplicativo como um dos Efeitos Criativos do próprio TikTok, é o “Inverted” (invertido). Segundo as contagens de visualizações públicas do TikTok, o efeito invertido já foi usado em quase 10 milhões de vídeos. Na página da hashtag #Inverted, uma descrição pergunta ao usuário: “Você está #Invertido? Use nosso Efeito Criativo e descubra.”

O algoritmo pode também favorecer o uso de filtros de simetria. Quer seja uma coisa algorítmica, puro interesse humano ou algum misto das duas coisas, o fato é que vídeos com a hashtag #Inverted atraíram nada menos que 23 bilhões de visualizações no aplicativo.

O que está impulsionando essa mania? A estranheza dos tempos de pandemia pode ser parcialmente responsável. Nos últimos dois anos temos tido tanto muito “tempo virtual cara a cara” com as pessoas quanto muito pouco tempo presencial cara a cara.

Passamos horas sozinhos olhando para o próprio rosto e os rostos de outras pessoas em telas de videoconferências, cara a cara com todos nossos defeitos. (Vale destacar que o aumento das cirurgias plásticas nesta era de pandemia é descrito como o “efeito Zoom”.)

Em público, o uso de máscaras nos privou da experiência humana sadia de interagir com rostos à nossa volta. Esse fato por si só pode explicar o interesse aumentado pelos apps que analisam rostos.

Mas também há motivações muito além da pandemia que alimentam essa tendência. Há a diversão moderna de viralizar nas redes sociais, o fascínio antigo e eterno com a beleza e como avaliá-la, a curtição despreocupada de brincar com imagens espelhadas e o desejo profundo de nos vermos como outros nos veem.

Leslie Lizette Cartier, estudante de 20 anos do Colorado, encontrou o ouro nas redes sociais com seu vídeo de simetria facial no TikTok, que já teve 11 milhões de visualizações. O acompanhamento musical que ela escolheu foi a canção de Quasimodo de “O Corcunda de Notre Dame”, da Disney. A canção já havia acompanhado filtros de simetria antes, e Cartier pegou carona na tendência. A letra dela diz, entre outras coisas: “Você deformado / e você é feio / e esses são os crimes que o mundo não perdoa”. Apesar da mensagem da canção, Cartier disse que não ficou perturbada com a falta de simetria de seu rosto revelada pelo filtro.

“Quando eu era adolescente, sempre achei graça do fato de um lado do meu rosto ser muito fortemente definido e o outro lado ser um pouco menos. Quando experimentei o filtro de simetria, eu já estava prevendo que seria assim. Fiz o vídeo com a intenção de que fosse engraçado.”

Mesmo assim, quando seu vídeo viralizou, muitas pessoas ficaram perturbadas, tanto com o visual quanto com o áudio, sugerindo que o vídeo incentivava as pessoas a zombar de pessoas com desfigurações. “Disseram que esse filtro, essa tendência toda, é muito prejudicial”, disse Cartier. “Falaram: ‘Você está tirando um sarro. Imagine pessoas que são realmente feias –isso pode atingi-las’.”

Jornalistas vêm documentando o fenômeno, falando dos efeitos negativos para a saúde mental de se ver como as outras pessoas a veem e propondo maneiras de lidar com esse autoconhecimento recém-adquirido. Muitos artigos tratam a questão como uma espécie de trauma, outro exemplo da insegurança corporal provocada pela internet. Alguns descrevem o problema como “dismorfia de filtros”.

Isto dito, é possível que a obsessão atual pela simetria tenha origens muito mais antigas e profundas que quaisquer desses gatilhos. O fascínio humano com a simetria é um fenômeno antigo, que tem vastas implicações culturais e biológicas, algo que ajuda a explicar as emoções fortes que vêm sendo manifestadas nas redes sociais.

A beleza sempre atraiu avaliações e quantificação. Aristóteles considerava que “as maiores formas de beleza são a ordem e a simetria”.

Vitrúvio, arquiteto da antiguidade romana, comparou a beleza de um templo simétrico à beleza de uma pessoa simétrica. Leonardo da Vinci criou seu célebre desenho do “Homem Vitruviano” em 1490, mostrando uma figura humana nua de proporções ideais e simétricas, demonstrando as restrições matemáticas postuladas por Vitrúvio, conhecidas como a “proporção áurea”.

O conceito de simetria nos ajuda a enxergar ligações entre nossa vida humana e todo o resto da criação –um vínculo entre a beleza humana e o funcionamento complexo da natureza, biologia, matemática e física. Cientistas descobriram que os animais procuram a simetria em seus potenciais parceiros. As aves precisam de asas simétricas para voar. Pernas simétricas ajudam os humanos a caminhar.

A simetria chega a ser crucial para a física moderna. Como explicou em e-mail Mordecai-Mark Mac Low, diretor de astrofísica no Museu Americano de História Natural, “mesmo as teorias de Einstein sobre a relatividade especial e geral dependem da simetria, com respeito à velocidade relativa ou à própria curvatura do espaço-tempo”.

Assim, parte da obsessão das redes sociais com simetria pode, na realidade, nascer de um imperativo milenar que no passado privilegiava a simetria (e possivelmente ainda o faça).

Alguns cientistas que estudam a beleza afirmam isso há tempos. Em seu livro de 1999 “Survival of the Prettiest”, a professora de psicologia de Harvard Nancy Etcoff argumenta que todos os seres humanos, independentemente de cultura ou etnia, amam a beleza e sentem-se atraídos por ela.

“Quanto mais simetria um corpo possui, mais atraente é”, ela disse, entrevistada. “Vemos algo de ‘errado’ mesmo nas menores assimetrias.” Embora os conceitos de beleza mudem ao longo do tempo, ela disse, muitas pessoas “querem olhar para algo que seja quase perfeito ou que não tenha defeitos evidentes”.

É injusto ou errado dissecar a beleza dessa maneira? É antifeminista (dado quanto mais tempo e energia as mulheres tendem a dedicar à sua aparência)? Talvez. Para Etcoff, porém, as interpretações culturais não vêm ao caso. Segundo ela, algumas coisas são instintivas.

“Somos capazes de transcender nosso instinto, mas ele faz parte da natureza humana.” Ela destacou que o DNA é “o produtor original de simetria”.

Diante disso, não chega a surpreender que as pessoas que trabalham na cultura da beleza muitas vezes mostrem tanto interesse pela simetria quanto Aristóteles ou Vitrúvio. Segundo o cirurgião plástico Stafford Broumand, de Nova York, “a maioria das pessoas é assimétrica. Há algumas modelos que possuem simetria facial incrível, e quando você as vê, é de tirar o fôlego. Por que elas são tão espetacularmente belas? Aquela simetria impressionante faz parte da razão.” (Quais modelos em especial? Broumand não quis responder. “Podem até ser minhas pacientes.”)

Mas não é um pouco desalmado reduzir nossos rostos preciosos, singulares, a equações e proporções? E o charme da imperfeição, como fica? E o adorável sorriso torto de Drew Barrymore? E as feições assimétricas e sexies de Ellen Barkin? E a pinta de Cindy Crawford?

“Todas as coisas são literalmente melhores, mais belas e mais amadas graças às imperfeições que lhes foram divinamente dadas”, escreveu o pensador britânico oitocentista John Ruskin em “The Stones of Venice”. Etcoff reconheceu: “A estranheza, a raridade, a singularidade de uma pessoa podem ser extremamente atraentes”.

Encontramos uma corroboração disso num gênero artístico que data do Japão do século 15. Os gregos podem ter valorizado a perfeição, mas a tradição japonesa antiga do kintsugi (que significa “juntar com ouro”) tinha ideais muito diferentes.

O kintsugi, que ganhou popularidade no século 17, é a arte de reparar objetos de cerâmica quebrados, preenchendo uma rachadura com laca e então destacando a “cicatriz” com ouro, platina ou prata em pó.

“O kintsugi é um princípio estético que celebra as quebras e imperfeições, em vez de ocultar ou rejeitá-las”, disse Petya Andreeva, professor de história da arte asiática na Parsons School of Design. “É derivado da doutrina budista do wabi-sabi, que ressalta a impermanência do mundo material e o caráter transitório da experiência humana. A estética do wabi-sabi destaca os acabamentos ásperos ou desiguais e a assimetria.”

Contemplar o kintsugi pode não oferecer consolo imediato a jovens aflitos nas redes sociais, nem a outros de nós que já estamos fartos de ver o próprio rosto em bate-papos em vídeo. Mas oferece uma perspectiva valiosa, especialmente quando vista à luz de filosofias que alegam que temos a necessidade “natural” ou instintiva de simetria. No fundo, não se trata tanto de visões divergentes, mas de duas óticas pelas quais podemos olhar o mesmo fenômeno.

Quer você ame e busque a simetria (chamemos isso de o lado vitruviano) ou celebre e respeite sua ausência (o lado do kintsugi), caso esteja procurando algum tipo de harmonia diante de rupturas ou conflitos. E buscar fazer sentido do mundo e suas imagens é realmente uma busca nobre, que tem uma história longa.