França vê ‘imaginação sem limite’ em relatório brasileiro que a cita como ameaça
A Embaixada da França em Brasília disse, em nota postada no Twitter, que os autores do…
A Embaixada da França em Brasília disse, em nota postada no Twitter, que os autores do relatório do Ministério da Defesa em que o país europeu é citado como a principal ameaça externa ao Brasil nos próximos 20 anos têm “imaginação sem limites”.
“Forças Armadas de todos os países realizam frequentemente esse tipo de exercício de análise de cenários. Entretanto, nós saudamos a imaginação sem limites dos autores desse relatório”, diz o texto.
A Folha de S.Paulo revelou nesta sexta (7) a existência da minuta “Cenários de Defesa 2040”, organizado pela Escola Superior de Guerra a partir de 11 reuniões setoriais pelo país, que ouviram 500 pessoas -a maioria, segundo envolvidos no processo, composta por oficiais.
O texto embasa a discussão, na cúpula do ministério, sobre a revisão da Estratégia Nacional de Defesa, que deverá ser enviada ao Congresso até o meio do ano. As simulações estão sob análise, e não foram ainda sancionadas ou rejeitadas pela pasta, conforme a reportagem relatou.
Nesta sexta (7), o Ministério da Defesa reafirmou isso em nota, dizendo que o documento não reflete a posição da pasta ou do órgão acadêmico militar. “Cenários prospectivos são ferramentas empregada por qualquer corporação ou país de sucesso”, diz o texto.
A nota ainda acena a Paris. “Destaca-se a importância atribuída por este ministério à parceria estratégica que o Brasil e a França assumiram na área de Defesa para o século 21”, afirma.
Em quatro cenários apresentados, a França é a única ameaça constante devido à sua posição acerca da Amazônia. O país europeu possui um departamento ultramarino na região, a Guiana Francesa, que faz fronteira com o Amapá.
Em 2019, no auge da crise de imagem decorrente dos incêndios florestais na região amazônica, o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que a internacionalização da área deveria ser discutida para garantir sua preservação. A fala ocorreu no meio de um duro embate público com seu colega brasileiro, Jair Bolsonaro, que envolveu até ofensas pessoas contra a primeira-dama francesa.
Como as reuniões da minuta foram feitas enquanto a polêmica ainda estava quente, é possível que isso tenha influenciado os ouvidos. Seja como for, a ideia de interferência estrangeira na Amazônia é um temor estratégico das Forças Armadas brasileiras desde o início do século 20, e a defesa da integridade territorial está no coração de sua doutrina.
Os planejadores brasileiros esqueceram, contudo, que a França também é a maior parceiro militar do Brasil. Em acordo firmado em 2009, ficou acertada a produção conjunta de 50 helicópteros, 4 submarinos convencionais e 1 nuclear -o primeiro barco de propulsão diesel-elétrica, o Riachuelo, já está no mar em testes.
“Se a França é de fato a futura grande ameaça à segurança nacional do país, o Brasil precisa então revisar a situação do projeto de construção de submarino de propulsão nuclear. Caso contrário, o estudo apenas serve como exercício de ficção psicodélica”, avaliou o ex-secretário de Assuntos Estratégicos do governo Michel Temer, Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard.
Além disso, há intenso intercâmbio entre oficiais de ambos os países, que frequentam academias militares dos parceiro. Isso é lembrado no texto da embaixada: “O fato é que o Brasil é nosso principal parceiro estratégico na América Latina e que a França conserva, há décadas, relações de cooperação diárias, estreitas e amigáveis com as Forças Armadas brasileiras”.
Segundo a Folha de S.Paulo ouviu de diplomatas europeus e brasileiros, o mal-estar entre os franceses com o relatório foi intenso. No ano passado, Bolsonaro já havia feito a desfeita de desmarcar uma reunião com o chanceler do país para ir cortar o cabelo -e fazer uma “live” no Facebook enquanto era atendido.
A reportagem foi replicada em alguns meios de comunicação da França, em tom de descrença e galhofa. O cônsul da França em São Paulo, Brieuc Pont, repostou a história e comentou: “Não sei se é para rir ou chorar”.
No relatório, há um cenário hipotético em que a França lidera uma campanha nas Nações Unidas visando dar independência à reserva dos índios ianomâmi, e militariza com “meios navais, aéreos e terrestres” a Guiana Francesa para garantir o movimento. Não é dito o que ocorreria em caso de uma guerra, contudo.
O texto simula também conflitos com outros vizinhos, como a Venezuela, adversária ideológica do governo brasileiro. No caso da Bolívia, uma intervenção armada brasileira é especulada para proteger fazendeiros do país em Santa Cruz de la Sierra.
Alguns dos cenários chamaram a atenção de países vizinhos. A previsão de que a Argentina irá se aproximar da China após passar por uma recuperação econômica, levando Pequim a abrir uma base espacial e tentar colocar militares no país vizinho, foi destacada por meios como o jornal La Nacion, o Grupo La Provincia, o site Infobae e a agência Télam.
O texto é permeado pela ideia de um mundo dividido pela influência dos EUA e da China, algo que já se reflete hoje na América Latina.
Embora o texto não seja definitivo, ele sofreu críticas em alguns grupos oficiais das Forças Armadas. Dois generais do Exército, por exemplo, consideraram a elaboração dos cenários amadora. Já um almirante elogiou as partes da minuta dedicadas à preocupação com a defesa do Atlântico Sul, hoje altamente vulnerável.
Mas o mesmo oficial questionou o óbvio: a França ser eleita como adversária nos próximo 20 anos, período em que em tese será lançado o submarino nuclear brasileiro com tecnologia francesa, parece uma contradição em si.