Impacto da covid em touradas gera ameaça ambiental na Espanha, diz setor
Bilheteria despenca e dá prejuízo bilionário a criadores de touros bravos que investem até R$ 34 mil
Enquanto grupos de defesa de animais comemoram a paralisação quase total das touradas espanholas devido à pandemia de coronavírus, membros do setor alertam para um desastre ambiental silencioso e muito mais amplo.
Por trás dos vistosos espetáculos turísticos —em que ativistas veem crueldade e aficionados enxergam estratégia, técnica e arte— está uma raça especial de touro cuja criação conserva 500 mil hectares na Espanha —quase o tamanho do Distrito Federal brasileiro.
Chamado de touro de lídia —ou simplesmente touro bravo—, ele é um dos raros herbívoros que atacam para defender seu território em vez de fugir, e seu temperamento selvagem exige que seja criado solto.
Às entidades que denunciam maus-tratos, o setor argumenta que sua pecuária é muito respeitosa com os animais e a compara com a do gado de corte, em que um boi pode ser confinado em 9 m² (parâmetro mínimo da União Europeia), é estressado frequentemente e abatido quando atinge cerca de 450 kg, a partir dos 18 meses.
Nos rebanhos de touro bravo, cada um deles pasta no equivalente a três quadras de uma cidade (30 mil m²), método de criação favorável à biodiversidade de plantas e animais segundo o Ministério da Agricultura da região de Extremadura e a Fundação para a Biodiversidade, que firmaram um convênio para apoiar a atividade.
Touros bravos também vivem por mais tempo —no mínimo dois anos, quando começa o processo de seleção das fêmeas que serão reprodutoras por até duas décadas.
A partir dos três anos, sempre nos pastos, os machos recebem reforço que inclui vitaminas, sais minerais, cálcio, proteína vegetal (de soja, cevada e aveia) para favorecer a musculatura e ferro e carboidratos para ganhar energia.
“Trata-se de desenvolver por mais de quatro anos o crescimento de um atleta que um dia fará por meia hora uma exibição de força temperada e bravura única, propriedade exclusiva deste animal”, diz o presidente da União dos Toureiros de Lídia (UCTL), Antonio Bañuelos.
Mais área por cabeça e anos de “dieta de atleta” elevam o custo dos touros bravos a de 4.000 a 5.000 euros (de R$ 27 mil a R$ 34 mil) por animal.
Antes da pandemia, o alto investimento era rentável. Numa grande praça como a Las Ventas, de Madri, o preço de um touro ultrapassava 10 mil euros (R$ 68 mil).
Mas eles têm um prazo de validade para entrar nas grandes arenas, a partir do qual deixam de ter valor. “Touros de luta só podem ter no máximo cinco anos”, afirma Eduardo Miura Fernández, criadorde cerca de 700 animais. “É quando o animal está fisicamente mais forte”, afirma Bañuelos.
Com as arenas fechadas, milhares deles passaram da idade ideal, e produtores que não suportaram o custo de mantê-los sem contrapartida de receita tiveram que abatê-los como gado de corte —a um preço estimado de 500 euros (R$ 3.400) cada um.
Nos 347 rebanhos registrados na UCTL, esse foi o destino de 10 mil machos, além de uma redução no número de vacas, não contabilizada.
A única boa notícia foi o clima em 2020, que ajudou a manter viçosas as pastagens, reduzindo a necessidade de rações, afirma Bañuelos. Miura, por exemplo, não precisou sacrificar touros, mas propriedades com rebanhos maiores não tiveram alternativa, e criadores menores simplesmente faliram.
Mais que o desastre financeiro, o pecuarista cita a perda genética e ambiental. Décadas de seleção são necessárias para obter animais com características ideais de agressividade, ânimo e comportamento destemido, propriedades que só fazem sentido na cultura de touros. Sem touradas, as fazendas sustentáveis tendem a desaparecer.
Seria um estrago menor se atingisse apenas os cerca de 200 touros que vão anualmente às arenas principais, mas a chamada “cultura de touros” é muito mais ampla, afirma José María Ramos, que há dez anos dirige a agência de turismo educativo Aprende de Toros.
Até 2019, ocorriam também na Espanha cerca de mil “jogos de touros” (sem toureiros matadores, promovidas por cidades ou entidades) e até 18 mil “festejos de touros” —atividades que variam de recortadores (homens e mulheres que fazem acrobacias para escapar das investidas taurinas) a corridas atropeladas pelas ruas de cidades.
Estimativas de perdas são sempre imprecisas, mas cada touro sacrificado representa uma diferença de cerca de 3.500 euros (R$ 24 mil) entre o custo de sua criação e o preço pago pela carcaça nos frigoríficos.
Nos cálculos da UCTL e de Miura, só na pecuária o prejuízo excede 150 milhões de euros (R$ 1,025 bilhão). Para fora da porteira há também transportadores de animais, administradoras das arenas, emissoras de TV, agências turísticas, hotéis, restaurantes, os profissionais de tourada, o setor de confecção necessário para fazer seus figurinos e escolas de formação, entre outros.
De forma global, o cálculo é que o circuito principal de touradas fature 500 milhões de euros (R$ 3,4 bi), principalmente com bilheterias. É uma fração do que arrecadam os clubes de futebol, mas cinco vezes a bilheteria dos cinemas na Espanha, segundo a plataforma Economia de Touros.
A venda de ingressos vinha em alta —em 2019, foram vendidos 940.852 ingressos, 641 mil dos quais apenas na madrilenha Feiras de San Isidro, a mais importante do mundo.
Em 2020, San Isidro foi cancelada pela primeira vez desde seu início, em 1947, e a temporada de touradas espanholas sofreu um corte de 89%.
A julgar pelas agendas das praças, a atividade ensaia um retorno em 2021. A arena La Maestranza, em Sevilha, anuncia dez touradas entre este domingo (18) e 2 de maio, com ingressos de 26 a 177 euros (R$ 178 a R$ 1.209).
“Mas a recuperação é ainda muito lenta para todos os envolvidos”, afirma Miura. Um dos problemas é o limite de público, já que mais de 80% das receitas taurinas provêm da bilheteria.
Em Sevilha, por exemplo, o governo local impôs uma distância de 1,5 metro entre espectadores, o que significa reduzir a ocupação para 12% do total —uma restrição exagerada para um evento ao ar livre, segundo Ramos, que vê uso político do tema.
“A cultura taurina sempre foi de todas as ideologias e classes, mas de uns tempos para cá touradas são rotuladas como de direita. É uma ignorância histórica; há comunistas famosos adeptos da cultura do touro.”
Ramos diz temer que o governo federal, encabeçado pelo Partido Socialista Operário, use a pandemia como pretexto para estrangular o setor. Programas de ajuda ao setor agrário foram lançados, mas são inacessíveis aos criadores de touros bravos ou insuficientes, segundo análise da Asaja (associação profissional que reúne 200 mil membros do setor agrícola).
Proteger a pecuária dos touros bravos deveria ser, entretanto, de interesse dos políticos, diz Bañuelo, porque garante mais de 14 mil empregos rurais diretos —incluindo veterinários, zootécnicos e vaqueiros especializados em lidar com animais selvagens— e 90 mil indiretos, “justamente nas regiões mais deprimidas, que estão se esvaziando”.
Ou seja, não põe comida na mesa de trabalhadores apenas, mas evita os problemas sociais causados pelo êxodo rural, diz a UTCL.
Já entidades como AnimaNaturalis e CAS International lançaram uma campanha contra o subsídio de touradas em La Rioja (norte da Espanha). Segundo as ONGs, os recursos destinados a festas taurinas poderiam manter 30 leitos de UTI por ano, além de comprar 23,6 mil testes de Covid-19 e 467 mil máscaras.
“Entendo os que não gostam das touradas e os respeito, mas é sempre preciso conhecer antes de criticar”, afirma Ramos, que discorda dos que veem maus-tratos nos jogos taurinos.
“São animais extremamente bem cuidados, distantes dos homens até que entrem na arena. Toda a atividade está sob regras estritas, inclusive os sacrifícios”, diz.
Para Ramos, touradas em que os touros não morrem na arena são soluções hipócritas, já que ele é abatido logo depois. “O momento em que o touro é morto é o ápice de um ritual que envolve também muito perigo para o homem. A morte é cruenta, mas não cruel, e a luta deve ser sobretudo bela para engrandecer o touro e o toureiro”, diz.
Ramos acrescenta que as touradas são o único lugar de onde um bovino criado por humanos, tendo sido enviado para a morte, pode escapar dela. Quando um touro demonstra na arena temperamento excepcional, o diretor da prova ergue um lenço cor de laranja. É o sinal para o indulto.
Esses touros —5% do total— voltam para suas pastagens, onde ficarão até o fim dos dias.