GUERRA NA UCRÂNIA

Justiça da Rússia multa professor por se expressar publicamente contra Guerra da Ucrânia

Docente se recusou a ensinar que ucranianos se aliaram a colaboradores dos nazistas e que Ocidente espalha discórdia na Rússia

Justiça da Rússia multa professor por se expressar publicamente contra Guerra da Ucrânia (Foto: Ministério da Defesa da Rússia)

Dias após a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro, Andrei Shestakov abriu um conjunto de arquivos em um grupo do WhatsApp para professores de história como ele em sua cidade no leste da Rússia. Os arquivos são instruções sobre como ensinar alunos adolescentes a respeito do conflito. Não está claro quem compartilhou os arquivos no grupo de mensagens, mas muitos dos documentos contêm a insígnia do Ministério da Educação de Moscou.

O material inclui guias de aula afirmando que os soldados russos que lutaram na Ucrânia são heróis, que os governantes da Ucrânia se aliaram a pessoas que colaboraram com os nazistas na Segunda Guerra, que o Ocidente tenta espalhar a discórdia na sociedade russa e que os russos devem permanecer unidos.

Shestakov disse ter folheado os arquivos durante uma de suas aulas. Hoje com 38 anos, ele contou que, antes de se tornar professor, em janeiro, trabalhou durante 16 anos como policial. Mas nos últimos anos, disse, teve cada vez mais dúvidas sobre se os governantes russos estão cumprindo os valores que professam sobre democracia, influenciado em parte pelo proeminente crítico do Kremlin Alexei Navalni.

Ele decidiu não ensinar os módulos para seus alunos na escola Gimnasium No. 2, na qual trabalhava em Neriungri, cidade de mineração de carvão no leste da Sibéria, cerca de 6.700 km a leste de Moscou.

Em vez disso, explicou para os alunos o conteúdo do manual de ensino e por que ele é historicamente impreciso. Por exemplo, disse que o material afirma que a Ucrânia foi uma invenção da Rússia comunista bolchevique, mas os livros de história discutem a história ucraniana, que remonta a séculos.

Ele foi mais longe. Em 1º de março, disse aos alunos durante uma aula de educação cívica que não os aconselharia a servir no Exército russo, que ele se opunha à guerra contra a Ucrânia e que os líderes russos exibiam elementos do fascismo mesmo dizendo que estavam lutando contra o fascismo na Ucrânia, segundo depoimento dado por Shestakov à polícia.

Nos dias seguintes, a polícia local e o Serviço Federal de Segurança, conhecido como FSB, convocaram Shestakov para um interrogatório, de acordo com a declaração assinada em 5 de março sobre seus comentários em sala de aula. Ele disse não ter sido acusado em relação a esses comentários. O FSB e a polícia local não responderam a pedidos de comentários.

Um tribunal o multou em 35 mil rublos (cerca de R$ 164 mil) em 18 de março por desacreditar as Forças Armadas russas, depois que ele republicou vídeos de entrevistas com soldados russos capturados na Ucrânia, e ele afirmou ter deixado o emprego no mês passado por acreditar que seria demitido de qualquer maneira, por sua oposição pública à guerra. A autoridade educacional local e o Ministério da Educação não responderam a pedidos de comentários sobre Shestakov e o manual escolar.

Em contato com a escola por telefone, uma mulher que se identificou como diretora interina disse que não comentaria o caso de Shestakov e encerrou a ligação.

Professores de toda a Rússia receberam manuais de ensino iguais ou semelhantes, de acordo com dois funcionários do sindicato de professores, dois outros professores e postagens em redes sociais de duas escolas relatando que ensinaram os módulos. Olga Miryasova, funcionária de um sindicato chamado Professor, disse que as autoridades regionais de educação distribuíram o manual de ensino que Shestakov recebeu para várias escolas do país.  Um dos professores disse que recebeu um pacote de ensino diferente do enviado a Shestakov, embora tivesse conteúdo semelhante.

A iniciativa mostra que o Estado russo –que vem intensificando seu controle da grande mídia– agora está ampliando sua propaganda sobre a guerra às escolas, enquanto o Kremlin busca conquistar apoio. Desde o início da guerra, muitas escolas publicaram imagens nas redes sociais mostrando alunos enviando mensagens de apoio às tropas e em formação para exibir a letra “Z”, símbolo de apoio à guerra na Rússia.

Professores que discordam da guerra estão agora se juntando às fileiras de ativistas da oposição, organizações não governamentais e jornalistas independentes, sentindo a pressão do Estado russo com multas, processos judiciais e a perspectiva de perder seus empregos. O presidente Vladimir Putin assinou no início de março uma lei que torna a divulgação de informações “falsas” sobre as Forças Armadas russas um crime punível com multas ou penas de prisão de até 15 anos.

Mesmo antes da invasão, o Kremlin vinha apertando seus oponentes usando prisões, censura na internet e listas negras. O Kremlin não respondeu a pedidos de comentários sobre como lida com a oposição à guerra, o manual escolar e o caso Shestakov. O ministro da Educação da Rússia, Serguei Kravtsov, disse a um comitê parlamentar em março que sua pasta lançou uma campanha nacional para discutir as relações russo-ucranianas com alunos, em meio a perguntas de crianças sobre a situação na Ucrânia e as sanções.

O Kremlin disse que está aplicando leis para impedir o extremismo e as ameaças à estabilidade. O governo diz estar realizando o que chama de “operação especial” para destruir as capacidades militares de seu vizinho do sul, “desnazificar” a Ucrânia e impedir o genocídio de pessoas de língua russa, especialmente no leste do país. Kiev e seus aliados ocidentais descartaram isso como um pretexto infundado para a guerra e acusam as forças russas de matar civis.

‘Guerra híbrida’ no oeste

O manual de ensino que Shestakov recebeu diz que é destinado a alunos entre 14 e 18 anos. Ele inclui planos de aula detalhados, links para vídeos de discursos de Putin e filmes curtos para ilustrar as aulas. De acordo com os materiais, o Ocidente está travando uma guerra de informação para tentar voltar a opinião pública contra os governantes da Rússia, e todo o povo russo precisa se manter firme contra isso.

Um plano de aula explica que a Rússia estava travando uma guerra cultural contra o Ocidente, que havia destruído “a instituição da família tradicional” e agora tenta impingir seus valores à Rússia. Diz que desde o colapso da União Soviética a Ucrânia conduziu uma política antirrussa.

“Houve ataques à língua russa, nossa história comum foi fraudada, criminosos de guerra e grupos criminosos da Segunda Guerra Mundial foram transformados em heróis”, segundo o documento, que se refere aos nacionalistas ucranianos que fizeram aliança com a Alemanha durante aquela guerra.

Outra lição diz que o Ocidente está implantando a “guerra híbrida” –uma mistura de propaganda, sanções econômicas e pressão militar– para tentar derrotar a Rússia fomentando o conflito interno. “É exatamente por isso que eles nos incitam a participar de manifestações não autorizadas, nos incitam a infringir a lei e tentam nos assustar”, diz o texto. “Não devemos sucumbir à provocação”, diz o documento.

Os módulos incluem um jogo em que os alunos têm 15 segundos para decidir se uma afirmação é verdadeira. Uma declaração diz: “A organização de atos, provocações às autoridades e reuniões em massa são uma maneira eficaz de resolver um conflito híbrido”. Segundo a lição, a resposta correta é “falsa”.

Danil Plotnikov, professor de matemática em Cheliabinsk, nos montes Urais, disse que seus chefes lhe pediram para ensinar conteúdo semelhante, mas de um pacote de ensino diferente do que Shestakov recebeu; Plotnikov não identificou quem eram os chefes. Tatiana Chernenko, professora de matemática em Moscou, disse que colegas de outras escolas disseram a ela que foram convidados a ensinar módulos semelhantes, mas estes não foram ensinados na escola de Chernenko.

Os professores  disseram que algumas regiões e escolas forçaram as aulas mais do que outras. Nenhum dos cinco professores disse ter ouvido falar de casos em que os professores receberam ordens explícitas para ministrar os módulos. Segundo eles, isso geralmente era enquadrado como pedido ou recomendação de uma escola ou das autoridades educacionais regionais.

Alguns se negaram e não enfrentaram consequências, disse Daniil Ken, presidente de um sindicato independente chamado Aliança de Professores. Outros não deram as aulas, mas disseram aos chefes que sim, disse Ken. Ele acrescentou que recusar era um risco, pois os professores não sabiam se seus diretores os pressionariam a se demitir. Ken afirmou que seu sindicato ouve cerca de meia dúzia de professores por semana que dizem estar desistindo porque não quiseram promover a linha do Kremlin.

Despertar

Shestakov, que é magro e usa o cabelo cortado rente, pratica sambo, arte marcial desenvolvida no Exército soviético. Ele disse que sua carreira na polícia incluiu um período de um ano nas forças especiais do Ministério do Interior, um braço de aplicação da lei cujos oficiais estão lutando na Ucrânia. O Ministério do Interior não respondeu a um pedido de comentário.

Em 2018, quando era um oficial comunitário trabalhando com delinquentes juvenis, ele teve um despertar político. Começou a assistir a vídeos divulgados por Navalni, a figura que hoje está numa prisão russa e denunciava a corrupção de líderes do Kremlin. “Eu me tornei uma pessoa de oposição”, disse Shestakov.

Ele disse que quando a guerra começou as imagens das vítimas o perturbaram, e ele passou horas assistindo a vídeos dos combates nas redes sociais. Sob um pseudônimo, republicou os vídeos de entrevistas com soldados russos capturados na Ucrânia na seção de comentários de um canal de mídia local que tem cerca de 5.200 assinantes, segundo Shestakov e a decisão judicial de 18 de março.

O tribunal disse que suas ações violaram uma lei que proíbe o descrédito das Forças Armadas.
Shestakov disse suspeitar que o FSB tenha escutado suas conversas telefônicas nas últimas semanas, embora não tenha provas disso. Também disse que viu pessoas que seriam oficiais disfarçados do FSB três vezes nos últimos dias. O FSB não respondeu sobre se está monitorando o professor.

Agora, Shestakov planeja deixar a Rússia, porque diz temer novas sanções das autoridades. Ele se juntaria a dezenas de milhares de oponentes do Kremlin que também fugiram do país desde que Putin começou a reprimir duramente a oposição em 2018. Disse que planeja ir para a Turquia, a menos que as autoridades o impeçam de deixar o país. Permanecer e abandonar sua oposição pública à guerra não é uma opção, disse Shestakov. “Vai ser difícil eu manter minha boca fechada”, afirmou.