Lula cometerá grande erro se decidir se encontrar com Putin, diz Zelenski
Presidente da Ucrânia, Zelenski afirma que estava pronto para ir ao Brasil após posse de Milei, mas 'não pode ir sem ser convidado'
(Folhapress) Para quem Volodimir Zelenski torceria num jogo entre Brasil e Argentina? “Bom, se o vencedor fosse jogar depois contra a Ucrânia e você diz que o Brasil é melhor, eu torço para o outro.”
A pergunta é menos despropositada do que parece. O presidente ucraniano visitou a Argentina em dezembro para a posse de Javier Milei, mas nunca o Brasil. “Ele [Milei] me convidou. Não posso ir a um país a que não fui convidado.”
Foram as primeiras palavras que Zelenski fez questão de falar em inglês durante a entrevista de mais de uma hora que concedeu à Folha, ao lado de outros dois veículos brasileiros, nesta quinta-feira (18) em Kiev.
Durante a maior parte da conversa, que aconteceu no gabinete presidencial ainda repleto de sacos de areia lembrando barricadas, o chefe de Estado falou em ucraniano de voz rasgada, mas parecia escolher o inglês para deixar mais claras algumas posições.
“Quando fui à Argentina, falei com Chile, Paraguai, Uruguai, Equador. Estava pronto para ir ao Brasil”, diz, ainda no mesmo idioma. “Talvez Lula tenha outras prioridades, não sei.”
A relação de Zelenski com o Brasil tem sido acidentada: seu esperado encontro com Lula não aconteceu durante o G7 em maio passado, gerando um conflito de versões entre as duas chancelarias. O ucraniano chegou a dizer à Folha com alguma ironia, no mês seguinte, que o brasileiro estava procurando ser “original” em sua proposta de paz na região.
A reunião bilateral finalmente aconteceu em setembro, em Nova York e, segundo Zelenski, foi “muito boa”.
“Algo definitivamente mudou de forma positiva no beco sem saída que era nosso relacionamento”, disse o ucraniano nesta quinta. “O Brasil terá um grande impacto se a política de Lula com a Ucrânia mudar, se ele realmente quiser resolver a guerra e reconhecer a Rússia como agressora.”
Quando a Folha comenta que Celso Amorim, principal assessor de Lula para assuntos internacionais, deve ir à Rússia na próxima semana para um encontro sobre segurança do qual participarão outros membros do Brics, Zelenski faz uma pausa incomumente longa, de mais de cinco segundos.
“Não podemos impedir ninguém de ir aonde quiser”, afirma. “Se o Brasil não fizer nada radical… Se julga importante ouvir os dois lados, se está disposto a ouvir a Rússia. Mas fico surpreso. Se dois anos não foram suficientes para entender o que está acontecendo [na guerra], ele precisa nos ouvir de novo.”
Ele diz que entende o intuito de o Brics propor sua própria resolução para a guerra, mas “essa ideia não tem fundamento”. “Não por causa dos países, são poderosos, claro, mas não têm guerra nos seus territórios. Ela está no nosso. Ninguém desse círculo vai decidir quais devem ser os passos para o fim da guerra, porque precisamos trabalhar juntos.”
E se Lula for pessoalmente à Rússia para um encontro do Brics previsto para acontecer em outubro? “Seria um grande erro. Temos que isolar politicamente Vladimir Putin. Ele precisa sentir que cometeu um erro histórico ao invadir a Ucrânia. Quando você vai até ele, você o reconhece.”
A questão ainda tem o agravante de que o presidente brasileiro declarou que Putin poderia ir ao Rio de Janeiro na cúpula do G20, no final do ano, sem medo do Tribunal Penal Internacional, que tem um mandado de prisão contra o russo por supostos crimes de guerra. “Se eu for presidente do Brasil, e se ele vier para o Brasil, não tem como ele ser preso”, disse Lula em setembro passado.
Ao ser questionado se chamaria o presidente brasileiro para passar na Ucrânia antes de ir ao país inimigo, Zelenski reforçou um convite que já havia sublinhado duas vezes antes na entrevista: para que Lula compareça a um congresso global que acontecerá na Suíça em junho, sem a presença russa, onde se espera que avancem negociações internacionais sobre soluções para o conflito.
Falando em equívocos, ele também afirma que precisa reconhecer os da Ucrânia em relação à América Latina. “A política da Ucrânia, por décadas, foi distante de vocês, havia poucos laços econômicos entre os Estados, sem uma relação cultural. Foram oportunidades perdidas. Podemos corrigir se tivermos isso como prioridade. Não precisamos olhar só para a Europa porque nós estamos aqui, é preciso ampliar o olhar.”
O Brasil, por outro lado, teve relações longevas com a União Soviética, “um campo informacional que foi herdado só pela Rússia”, segundo ele, e fez com que o comércio entre os países se fortalecesse. Mas seria um “erro estratégico” dos brasileiros priorizar a Rússia em relação à Europa —segundo sugere Zelenski, em breve essas serão duas posições antagônicas devido à aproximação da União Europeia com a Ucrânia.
O apoio internacional tem sido assunto delicado para o governo ucraniano, que lida com investidas mais agressivas da Rússia no último mês, intensificadas após a reeleição de Putin. Os Estados Unidos, por exemplo, patinam para aprovar uma ajuda de US$ 60 bilhões à Ucrânia no Congresso, uma votação que deve acontecer neste sábado e sobre a qual Zelenski se diz otimista.
E ele tem a mesma esperança em relação ao envio de tropas europeias para lutar no front ucraniano, como tem sido aventado pelo presidente da França, Emmanuel Macron? Não muito.
Mas Zelenski aponta que medidas mais efetivas seriam, por exemplo, o envio de treinamento europeu para solo ucraniano, que não exija que os militares dali “percam tempo” tendo de sair do país para treinar por meses.
O presidente também exorta os países aliados a usar seus próprios espaços aéreos para abater foguetes russos disparados contra a Ucrânia, de forma similar ao que foi feito em Israel diante do ataque iraniano no último domingo.
Circula algum ressentimento entre os ucranianos de que há “dois pesos e duas medidas” no apoio oferecido por seus parceiros ocidentais a Tel Aviv, comparado com o destinado a Kiev.
Os europeus deviam se preocupar com o que está acontecendo ali, diz o presidente. “Imagine que nós falhemos. A Rússia não tem muito mais opções. Vão se dirigir aos Bálcãs, mesmo que digam que isso não vai acontecer. Eles precisam se aproximar mais e mais, e vão continuar indo até onde há menos resistência. Não vão cometer o mesmo erro [que cometeram na] Ucrânia”.