Mistérios do coronavírus: veja o que a ciência ainda não descobriu
Após sete meses de pandemia, mais de 131 mil mortes e 4,3 milhões de casos…
Após sete meses de pandemia, mais de 131 mil mortes e 4,3 milhões de casos confirmados no Brasil, o novo coronavírus ainda deixa a comunidade médica e científica sem respostas para conter totalmente o avanço da doença. As dúvidas passam por dilemas da imunidade, desafios do comportamento da doença e origem do vírus. Reunimos nove especialistas que lidam com os desafios da Covid-19 no dia a dia para contar um pouco dos mistérios que ainda os intrigam.
Daniel Lahr, Professor de Microbiologia Evolutiva no Instituto de Biociências da USP
Mistério: Como surgiu a linhagem do Sars-Cov-2 com potencial pandêmico?
O que é/Por quê?: Existem evidências de que o surgimento foi anterior aos eventos no mercado de Wuhan, na China. A questão é: natural de onde? Como? Temos a história que foi contada, de uma variedade viral que surgiu em uma população de morcegos e se transmitiu aos humanos por meio do consumo de carne selvagem, mas tem uma série de aspectos intrigantes relacionados a últimas pandemias: Sars, gripe aviária, gripe suína e Mers. Todas têm animais criados em confinamento, em contato com humanos, o que proporciona o surgimento de mutações. No caso do coronavírus, a história é complicada porque estamos falando de morcegos, e não existem criações de morcegos. Foram encontradas até amostras em esgoto pela UFSC, em 2018. A narrativa do mercado de Wuhan não se sustenta.
Desafio: Implantar uma política eficaz de contenção. A questão da variante ter surgido em uma população de morcegos é possível, a evolução permite, mas não está claro que foi isso. Se for, precisamos testar os morcegos no Brasil, porque é muito provável que o vírus esteja circulando nessa população. Tem muita evidência mostrando que talvez essa não seja a história.
Jamal Suleiman, médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas
Mistério: “Infectividade” do vírus
O que é/Por quê?: Por que algumas pessoas se infectam e outras não? Sabemos qual é a forma de transmissão, mas quais são os fatores determinantes que fazem com que alguns se infectem, e outros não, mesmo estando no mesmo espaço? Precisamos entender a infectividade do vírus e a suscetibilidade do receptor. Quantos receptores celulares são necessários para que aquela infecção seja entendida? Falamos que idosos e pessoas com doenças crônicas são mais vulneráveis, mas ainda é muito raso.
Desafio: A infectividade do vírus dificulta porque ela não parece ser uniforme, não segue um padrão. Sem parte das respostas dadas, fica difícil estabelecer estratégias de controle. Neste momento, a estratégia é atirar no escuro. Usamos métodos de barreira, como máscaras, distanciamento social e quarentena, mas as respostas eu não tenho.
Margareth Dalcolmo, pneumologista, professora e pesquisadora da Fiocruz
Mistério: Situação de latência do vírus
O que é/Por quê?: É a situação mais inquietante, porque não sabemos se o vírus tem possibilidade de permanecer ou não no corpo, e por quanto tempo. No caso, não foi fração de RNA, mas fração ainda infectante. Isso não é comum nas viroses respiratórias, que são autolimitadas. Ou as pessoas têm, e se curam, ou morrem, pois há uma intercepção de cada transmissão. As viroses crônicas — o maior exemplo é o HIV — têm consequências de natureza inflamatória. No caso do coronavírus, não sabemos se ele fica em situação de latência clínica, ou se é natureza inflamatória clínica não transmissível.
Desafio: O problema é diferenciarmos a latência clínica não infectante da que é infectante. Entender, por exemplo, se a pessoa, mesmo assintomática, pode estar em situação de latência do vírus. Existe a dúvida também se a pessoa portadora de uma fração de RNA será ou não para sempre portadora.
Nancy Bellei, infectologista da Unifesp e coordenadora do laboratório que testa brasileiros na vacina de Oxford
Mistério: Circulação do vírus em crianças
O que é/Por quê?: A conta que não fecha para mim é dizer que crianças são as maiores transmissoras do vírus. Elas transmitem muito, vão levar a doença para os avós, mas com base no que estão falando isso? São menos sintomáticas, mas transmitem mais? Isso não tem a menor plausibilidade biológica. As crianças pegam muito todas as doenças virais respiratórias, têm muitos sintomas e transmitem muito. No coronavírus, elas pegam menos, não têm sintomas e transmitem mais? Tem algo errado nesse raciocínio.
Desafio: É o que ninguém está fazendo perfeitamente. Deveriam deixar as crianças em algum lugar, por exemplo, irem à escola, para coletar secreção de todas elas, checar quais ficam positivas e quantas transmitiram. Tomar decisões intrigantes sem intrigá-las? É o absurdo do absurdo. Ninguém estudou, as pessoas partem de hipóteses, e as crianças seguem sem aulas.
Natália Pasternak, microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC) e pesquisadora do ICB-USP
Mistério: Resposta imune
O que é/Por quê?: O que está dando um baile na gente é a resposta imune do organismo, e isso é crucial para entender a doença. O vírus não se comporta dentro de uma caixinha. Temos indícios de que a resposta imune é confusa e sabemos que os anticorpos não são muito consistentes, não aparecem em todos. Tem gente que nem produz anticorpo.
Desafio: O maior problema é que é necessário tempo para ser resolvido. Para sabermos por quanto tempo uma pessoa fica protegida também precisamos de tempo. A gente ainda não pode dizer, por exemplo, que as vacinas vão proteger por anos. Nem conseguimos usar os testes para fazer um estudo de vigilância sanitária, pois não é possível ter um número real de quantas pessoas tiveram a doença. Já começa aí a confusão, porque os anticorpos não conseguem ser usados como demarcadores.
Paulo Lotufo, epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP
Mistério: Como o vírus entrou no país?
O que é/Por quê?: Todos os olhares mostram que houve 100 entradas, basicamente em São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, e depois parte ficou dispersa no país. O primeiro diagnóstico é de 26 de fevereiro, de uma pessoa que foi esquiar na Itália e voltou ao Brasil infectada. Mas, logo depois, tivemos gente internada que morreu em hospitais públicos. O primeiro caso de morte ocorre em 12 de março, mas a primeira morte oficial era do dia 17, mas o resultado do exame da pessoa que morreu só saiu em 30 de abril. É aquela história, como já tinha morrido, não deram muita importância, e então demoram para chegar nos dados oficiais de mortalidade.
Desafio: Saber por onde o vírus entrou dá a base para a coisa. A falta de resposta sobre a entrada teve um impacto muito grande, porque passamos sem saber se o vírus circulava no país. E já começaram no início as primeiras distorções socioeconômicas. A dificuldade é que tem de ter fôlego para rastrear. O dado correto seria fundamental porque teríamos tido uma informação extremamente importante para entender de fato o comportamento da doença, o quanto ela realmente é letal e qual o contágio. Eu gostaria muito de entender o que se passou com os funcionários dos três aeroportos, de São Paulo, Rio e Fortaleza. Essa história de que chegou pela Itália é conto da carochinha. O vírus passou pelas superfícies dos aeroportos sem ninguém saber da infecção. Seria impossível não ter diagnosticado um monte de casos junto com o do italiano se tivesse chegado pelo aeroporto.
Ralcyon Teixeira, infectologista e diretor da Divisão Médica do Emílio Ribas
Mistério: Qual paciente evolui para a forma mais grave da doença?
O que é/Por quê?: Esse ainda é o grande mistério porque às vezes pegamos um paciente que temos certeza que vai piorar, ter complicações, mas ele passa muito bem. O outro que estava indo bem, não tinha fator de risco, vai lá e piora.
Desafio: Ainda é saber quem é o paciente que vai piorar e necessitar de ventilação mecânica. A dificuldade é organizar os leitos de internação e ter uma visão mais próxima do paciente. Se soubéssemos que ele evoluiria para uma forma grave, já poderíamos deixá-lo internado desde o começo, com profilaxias e cuidados para evitar uma UTI, ou uma intubação. Saber quem vai piorar ou não é um gatilho.
Rosana Richtmann, infectologista do Emílio Ribas
Mistério: Imunidade de rebanho
O que é/Por quê?: Quanto da população precisa ser infectada por coronavírus para ser considerada imunidade de rebanho? No começo, falavam em 60%, 70% da população infectada, mas agora já estamos falando em porcentagens menores. Olhe para Manaus, que apesar de ter uma soroprevalência entre 20% e 25%, não vem apresentando uma segunda onda.
Desafio: Se eu sei que a imunidade de rebanho é suficiente para evitar a transmissão sustentada, eu posso flexibilizar mais até ter a vacina. Consigo programar ações de retorno à escola, como Manaus fez, por exemplo.
Sylvia Lemos Hinrichsen, infectologista, consultora de Biossegurança e Controle de Riscos da Sociedade Brasileira de Infectologia e professora da Universidade Federal de Pernambuco
Mistério: Peso dos fatores de risco
O que é/Por quê?: Antes, pensávamos que as pessoas imunocomprometidas teriam mais problemas, mas vimos que os pacientes com Aids não foram tantos. Por quê? Porque usaram retrovirais, ou porque a imunidade está sob controle? Por outro lado, também vimos um grande número de doentes com diabetes. Depois uma publicação que mostrou que não era tanto. A gente vê e “desvê”.
Desafio: Todo dia eu aprendo e desaprendo, nunca vi uma doença tão difícil. Tem muita informação que não bate, a doença diverge de etnia, de idade, de sexo e de comorbidades. A maior dificuldade é justamente ter clareza de quem é quem. Às vezes eu acho que um diabético pode ter uma evolução mais grave, mas não ocorre. Aí entra a imunidade, que não pode estar dissociada da comorbidade. A imunidade, principalmente a celular, evita que a pessoa que tem comorbidades tenha a forma grave da Covid-19. Não está claro se o problema é o vírus ou a consequência dele.