GOLPE

Nicarágua: governo confisca prédio do principal jornal do país

Redação do La Prensa foi transformada em centro cultural no começo da semana

Nicarágua: governo confisca prédio do principal jornal do país (Foto: Reprodução)

Os jornalistas que trabalham para o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo receberam a seguinte ordem, na manhã de terça-feira: “Camaradas: Reunidos às 10h30 onde estava o panfleto de direita La Prensa (…). Cobertura do ato de instalação do Centro Cultural e Politécnico José Coronel Urtecho. Antes que a “orientação” fosse enviada via WhatsApp, um grupo de sandinistas retirou da fachada do prédio, em Manágua, a placa histórica onde se lia “La Prensa”, há quase um século. Com isso, o governo consumou o confisco da redação do jornal, a mais antiga do país, já tomada desde agosto do ano passado.

A ausência da placa foi percebida muito cedo por motoristas e transeuntes na movimentada via de acesso à capital, Manágua, onde ficava o La Prensa. Foi um golpe simbólico, porque o jornal — batizado pelo poeta Pablo Antonio Cuadra como La República de Papel — desde sua fundação, em 1926, teve como carro-chefe a defesa das liberdades, quase sempre sitiadas na Nicarágua.

“Uma trajetória que o confrontou com três ditaduras que viram no jornal um obstáculo”, disse em comunicado a diretoria do jornal, um dia depois de o governo instalar um centro cultural no prédio privado, em um ato considerado “roubo”, uma vez que os confiscos são proibidos pela Constituição da Nicarágua em seu artigo 44.

O La Prensa foi invadido pela polícia em de agosto de 2021, quando o governo sandinista abriu “uma investigação” contra o jornal pelos supostos crimes de “fraude alfandegária e lavagem de dinheiro”, que levou à prisão do diretor-geral Juan Lorenzo Holmann.

Desde então, o prédio — avaliado em quase US$ 10 milhões, especialmente por sua rotativa e sua impressora comercial — está fechado por oficiais das tropas especiais. O regime fez com o La Prensa o mesmo que havia feito anteriormente com as redações confiscadas dos jornais 100% Noticias e El Confidencial: instalou postos de saúde nos prédios, cujas propriedades foram cedidas ao Estado, em uma medida que lembra a política de confisco da Revolução Sandinista nos anos 1980. Nesse caso, o La Prensa virou um centro cultural vinculado ao Instituto Tecnológico Nacional (Inatec).

“A história do La Prensa é uma história de ataques aos valores que ele representa”, disseram na nota parte dos membros do conselho-diretor do jornal — três de seus membros são presos políticos há mais de um ano.

A instalação do “centro cultural” foi anunciada pela vice-presidente Rosario Murillo no começo desta semana, sem especificar o local onde ele funcionaria.

— Vamos comemorar o 42º Aniversário da Alfabetização com a instalação do Centro Cultural e Politécnico José Coronel Urtecho. O passado não vai voltar! Vamos publicar toda programação desse Centro, que cobre uma zona muito populosa e muito popular da capital — comemorou Murillo.

A inauguração foi presidida por funcionários menos importantes na hierarquia sandinista, num ato em que o casal presidencial foi elogiado e o lema de Murillo foi repetido: “O passado não voltará, isso está decretado”.

A diretoria do La Prensa respondeu com uma declaração contundente, revendo a história de resistência do jornal, pela qual passaram os mais importantes jornalistas da Nicarágua. O incontornável princípio da liberdade de imprensa na Nicarágua também foi cunhado no La Prensa: foi feito por seu mártir diretor, Pedro Joaquín Chamorro, assassinado em 1978 pela dinastia dos Somoza, que também bombardeou e censurou a publicação.

“O passado são eles [referindo-se a Ortega e Murillo]. Eles representam todos os valores negativos que o La Prensa enfrentou por 96 anos à custa de grandes sacrifícios”, disse o conselho-diretor do jornal na nota. “Acima de tudo, o compromisso do jornalismo é com a verdade, a liberdade, a justiça e a democracia. É sua equipe que torna isso possível, assumindo os riscos que implica lutar contra inimigos tão poderosos. A imprensa é seus leitores. Enquanto houver nicaraguenses que o leiam, o La Prensa existirá”.

A consumação do confisco do jornal ocorreu quase um mês depois que eles tiveram que exilar toda a redação, devido a uma caçada feroz contra repórteres, fotógrafos e funcionários administrativos que terminou com a captura de dois de seus motoristas, que ainda estão presos na temida prisão de El Chipote. “Podem confiscar os nossos equipamentos e as nossas instalações, mas não poderão ir contra os valores que sustentam o nosso trabalho”, afirma o comunicado.

Antes de o jornal ser invadido pela polícia, já havia sofrido uma pena de 18 meses de embargo alfandegário sobre papel e tinta que quase o destruiu. No entanto, o jornal resistiu ao embargo e sua última edição foi impressa até que os policiais com seus fuzis invadiram a redação e também a biblioteca do jornal histórico.

O editor-chefe do La Prensa, Eduardo Enríquez, disse que com a ação o regime Ortega-Murillo completou o “roubo” das instalações do veículo. No entanto, não deixa de acreditar que o jornal “voltará a circular nas ruas do país, quando a Nicarágua voltar a ser uma República”.

Os jornalistas, como muitos outros nicaraguenses, se rearticulam no exílio ao mesmo tempo em que convidam os leitores a apoiá-los para continuar informando. Antes de agradecer as demonstrações de solidariedade pelo confisco, a diretoria do La Prensa divulgou, em seu comunicado, a paráfrase do título escrito pelo lendário editor Danilo Aguirre após o enterro de Pedro Joaquín Chamorro, que se dizia desafiador e presciente em 1978, um ano antes da derrubada do regime dos Somoza: “Os enterrados serão eles”. Em 2022, o La Prensa publica novamente: “Mais uma vez eles querem nos enterrar e, como aconteceu em outras ocasiões, os enterrados serão eles”.