Vaticano

Papa Francisco receberá ex-frequentadores da cracolândia

Projeto Pão do Povo da Rua, que torna ex-usuários padeiros e confeiteiros que distribuem alimento, organiza comitiva

“Não é padre, não é pastor. É professor”, repetia Ricardo Frugoli ao ouvir “Deus te pague, abençoe e proteja” aos montes durante a distribuição de pães na praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo.

“Não tenho problema com acolhimento religioso, mas meu negócio é dar comida”, diz o gastrólogo que, em 2020, na pandemia, trocou a alta gastronomia pelo projeto social que alimenta pessoas em situação de rua.

O professor barbado e de óculos, com ares de bom samaritano, embarca neste domingo (19) com sete ex-moradores de rua rumo à Itália, onde serão recebidos pelo papa Francisco no Vaticano na quarta (22). Um dia antes, vão à FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) falar de insegurança alimentar.

“Imagina só, o cara saiu da Princesa Isabel e vai ser recebido com coquetel e honras na Embaixada de Roma, na ONU e no Vaticano”, comemora Frugoli, 54, idealizador do Pão do Povo da Rua.

A “comitiva do pão” é como se autointitula a delegação escolhida a dedo entre os 28 acolhidos atualmente pelo projeto —pessoas que passaram pela rua, por albergues, pela cracolândia, em sua maioria ex-usuários de drogas, que colocam a mão na massa, como padeiros, cozinheiros e confeiteiros formados pela ONG, para alimentar os sem-teto. São todos remunerados, com contrato fixo e salários que iniciam em R$ 1.750.

O braço-direito de Frugoli é Ricardo Mendes, 44. Usuário de crack durante dez anos, após experimentar a droga por uma desilusão amorosa, está limpo há três. “É muito difícil aprender a esquecer o crack. A mente tenta sabotar o tempo todo, o tempo todo”, diz ele.

Sua pele traz vestígios —tem a cicatriz de um furúnculo causado pela substância e também a tatuagem em homenagem ao professor que salvou sua vida.

“Quando eu não tinha mais perspectiva de vida, encontrei o professor na praça. E depois de uma noite debaixo de chuva, vim caminhando até aqui. Todo mundo pode salvar alguém”, afirma o ex-frequentador da cracolândia.

Na praça ou na porta da ONG, é Daniel Batista, 39, quem organiza as filas. “Eu falo a língua deles, de igual para igual. Morador de rua não aceita não”, diz ele, que foi usuário de cocaína por dez anos, morou em ocupação e agora vai embarcar para Roma.

Em uma das distribuições, chegou a tomar cadeirada nas costas de um rapaz ao dizer que a comida tinha acabado. “Foi um esquecimento meu, porque temos que dar um jeito.”

Um desses “jeitos” é improvisar —com o leite, por exemplo. “Não dá para dar leite todo dia. Tem dia que é chá, pois não temos 500 litros por semana.”

E o pão é mesmo o carro-chefe da casa. “É macio, por causa da dentição; bonito, para atrair; gostoso e nutritivo, porque não damos presunto, queijo ou manteiga”, afirma o chef sobre a receita da amiga Adriana Aranha.

São 2.400 pães produzidos diariamente na cozinha do projeto, de onde também saem 400 pratos no almoço feito em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Até 1.500 pessoas não passam fome, todos os dias, graças ao Pão do Povo da Rua.

E, à noite, a padaria ainda distribui 150 marmitas que alimentam famílias de até quatro pessoas de baixa renda que vivem no Bom Retiro. E, pelo menos uma vez por mês, a ONG distribui cestas básicas na região central.

Para manter o projeto de pé, Frugoli conta que ia desde fazer bolinho até dirigir a Kombi amarelo e branca lotada de pães. E foi o chef quem tirou os sete das ruas. Comprou barracas para abrigá-los da chuva e do frio e foi buscá-los na cracolândia em recaídas. Firmou parceria com a Universidade Mackenzie para que voltassem aos estudos.

É ele quem recebe ligações de mães perguntando se os filhos estão vivos. Ou do dono do alojamento, que sabe que foi um dos seus que escondeu o cachimbo dentro do chuveiro.

E é o padeiro do coração grande que, até hoje, se tem dinheiro no bolso, esvazia tudo para comprar cigarro, escova de dente ou o que for para quem pede ajuda.

“Uma coisa forte que ouço é ‘eu dou a vida pelo senhor’”, diz ele, que em certo ponto precisou lidar com o burnout. Em um momento de angústia, pichou “utopia” nas paredes do local que abriga o Pão do Povo da Rua, antigo armazém de alimentos na 2ª Guerra Mundial.

“Tinha um sentimento de derrota. Fui aprendendo a lidar com a doença, que tem seu tempo e que passa pelo emocional.”

O desafio é manter em pé as duas frentes de trabalho —a de resgatar vidas das ruas e a de alimentar as que continuam nelas.

A primeira delas é marcada por altos e baixos, já que alguns não conseguem voltar à cozinha após recaídas com crack e cocaína. E a segunda é reagir aos que o querem fora dali “por causa da fila, da sujeira e daqueles que dormem nas calçadas após o rango”.

“Fui ameaçado de morte, querem pôr fogo no projeto”, lamenta o chef.

Única mulher na comitiva do pão, Daiane Rodrigues, 35, diz que vai pedir ao Papa Francisco que cuide da “sua bênção”, o filho adolescente que mora com a avó.

Vítima de violência doméstica por cinco anos, Daiane encontrou no projeto motivo para sorrir. “Tentei tirar a vida quatro vezes e hoje sei que se demorar meia hora para chegar aqui, já começam a me procurar”, diz ela emocionada.

Ainda compõem a comitiva Eduardo Martiniano, 37, Gabriel de Azevedo Costa, 28, Fred Nelson Sanches, 26, Willian dos Santos, 26, e Wellinton Silveira Trancanella, 22.

O Pão do Povo da Rua administra nove diferentes ações, entre elas um curso de panificação e confeitaria de 400 horas com chefs renomados, do círculo de amizades de Frugoli, que dão aulas gratuitas.

Pedir doações para o projeto virou rotina para o gastrólogo, que não esconde a frustração de não ter um grande patrocinador que o permita pagar o aluguel e os salários da equipe sem sufoco. “O brasileiro doa, mas só quando tem tragédia. Uma vez nossa Kombi pegou fogo. Em uma semana, me doaram seis Kombis.”

Uma tentativa é a venda de suas especialidades em pontos diferentes da cidade. “São carrinhos elétricos que vão com café, bolinhos e pães, e vamos ter um showroom no Copan.”

“Ele prova quase toda comida”, relata Thiago Augusto Oliveira, 31, ex-aluno de Frugoli que é o cozinheiro-chefe da panificação. “Fala para melhorar isso e aquilo, aqui não tem comida de baixa qualidade. É como um restaurante, servimos alta gastronomia para morador de rua.”

Tanto que o chef levou os aprendizes para jantar no estrelado Casa do Porco. “O pessoal está acostumado com prato cheio e estranhou quando comeu refeição gourmet”, brinca o cozinheiro.

“Ricardo leva o povo ao teatro, abre portas inimagináveis, expande nossos horizontes. E sempre diz: não tenho dinheiro, mas tenho amigos.”

Tanto ele faz pelos seus e por quem não conhece que, para os sete que encontrarão o papa Francisco, nem o pontífice de Roma merece tantas reverências quanto o professor.

“Eu só pratico a teoria da dádiva: dar, receber e distribuir.”